quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A Razoabilização como Principal Mecanismo de Defesa


A Razoabilização como Principal Mecanismo de Defesa

 

 

 



Richard Ruck*




O conceito de razoabilização é um dos mais importantes para a compreensão de determinados indivíduos e da sociedade moderna. O termo “racionalização” é usado tradicionalmente na história da psicanálise e é um campo aberto para confusões, além de ser impreciso. É interessante então retomar o termo “racionalização” e seu significado e inserir a discussão sobre razoabilização e ver se a alteração seria apenas uma troca de signo ou se é também uma substituição de significado.
O termo racionalização não nasce com Freud, como a maioria imagina. O seu criador era o colaborador e biógrafo de Freud, Ernest Jones. Jones apresentou o novo termo no Primeiro Congresso Psicanalítico Internacional, em 1908 e Freud (2003) usou o termo, ao que tudo indica, pela primeira vez, em 1911, no sua reflexão sobre O Caso Schreber. Os desdobramentos posteriores não significaram grande aprofundamento sobre tal termo. A racionalização foi entendida, por Freud, como um dos mecanismos de defesa. Anna Freud (1979), posteriormente, retomou a discussão sobre mecanismos de defesa e realizou uma discussão sobre o seu processo de ocorrência.
É interessante, no entanto, recuperar o significado do termo racionalização. Em síntese, na história da psicanálise, o termo ganhou o significado de um processo mental no qual o indivíduo busca tornar aceitável e racional uma determinada ação, ideia, sentimentos, etc. Ele funciona como um mecanismo de defesa, que visa expulsar da mente a consciência adequada de sua situação, ação, motivação, objetivo e em seu lugar colocar uma explicação racional e assim conseguir se convencer da racionalidade do que busca explicar. É um mecanismo que defende o indivíduo de verdades inconvenientes.
Esse é um termo útil para a análise individual e também para a análise social. Porém, há um problema no signo (na palavra “racionalização”) e um problema no significado (no que o signo expressa), sendo este último mais importante. O problema no signo é que a palavra aponta para um processo meramente racional. Ou seja, na racionalização o indivíduo tornaria racional o seu comportamento ou ideia, pois é isto que etimologicamente significa a palavra (ação de tornar racional ou ação de racionalizar). O processo, no entanto, não é apenas racional. A racionalidade envolvida nesse processo convive com outros processos. Não se trata de tornar “racional” e sim de se tornar “aceitável” ou “razoável” para o indivíduo. É claro que, na sociedade moderna, devido o processo de racionalização (no sentido sociológico do termo), o principal critério de definir algo como aceitável ou razoável é o racional. Mas não é o único, a moral, os sentimentos (e suas contradições), os valores, são outros elementos que estão relacionados mas não podem ser reduzidos ao “racional”. Outro problema do signo, é o uso do mesmo termo com outros significados. O mais famoso é o caso do sociólogo Max Weber (1992), que usa o termo num sentido sociológico e distinto. Claro que isso poderia ser resolvido com o esclarecimento que se trata de um termo psicanalítico e não um termo sociológico. Esse problema adicional se manifesta em ter que ficar explicitando isso todas as vezes que usar o conceito, principalmente para a psicanálise social, que aborda a sociedade e a racionalização com outro significado.
A outra objeção ao termo racionalização remete ao significado. O significado do termo racionalização precisa ser ampliado, no sentido de entender sua dinâmica e seu processo de formação nos indivíduos e grupos concretos. O problema do signo é um problema também do significado. É necessária uma coerência entre signo e significado. Se o significado não é apenas o “ato de racionalizar”, então a palavra não deve indicar isso. Um signo problemático gera um significado problemático ou confusão no significado. Forma e conteúdo devem ter uma unidade e a clareza do pensamento evita confusão e ilusão.
A questão é qual é o fenômeno (significado) que o signo expressa? O signo racionalização expressa o significado que não é contido na ideia de razão ou racionalidade e por isso é uma má expressão e permite confusão e ilusão. É por isso que propomos a substituição do termo “racionalização” pelo conceito de razoabilização. Vamos nos dedicar ao esclarecimento conceitual desse termo para ficar claro o seu significado e processo de formação.
A razoabilização é o processo mental no qual o indivíduo (ou um grupo de indivíduos) busca tornar razoável determinado fenômeno psíquico ou comportamento derivado[1]. Aqui temos dois conceitos complementares: razoável e fenômeno psíquico. Considerar algo “razoável” significa entender que está no domínio da razoabilidade. A razoabilidade significa que algo é razoável, sensato, conveniente, oportuno, ou seja, de acordo com o “bom senso”, o “senso comum”, a moral, a razão, os costumes. Logo, é algo aceitável. O critério de razoabilização não é tanto a razão, embora essa seja um de seus componentes, e sim a aceitação social, pois o indivíduo tenta convencer aos outros e a si mesmo da razoabilidade dos seus fenômenos psíquicos. Em termos freudianos, a razoabilização é a proeminência do superego sobre o inconsciente.
Se um paciente afirma que tem que lavar as mãos todas as vezes que vê um inseto e nós perguntamos a razão disso, ele pode dizer que não sabe ou então que é por causa de uma experiência negativa com insetos na infância. Nesse último caso, a resposta pode ser real, verdadeira, ou pode ser razoabilização. Não é razoável lavar as mãos todas as vezes que se vê um inseto, já que o contato não é físico, mas apenas visual. Uma experiência infantil, de cair num formigueiro, ou ser picado por um inseto, pode ser real e isso é razoável. Ora, o mecanismo da razoabilização visa justamente fazer parecer razoável o que não é, mesmo que use explicação aparentemente psicanalítica. Caso ele não tenha tido tal experiência infantil ou caso não seja esse o motivo, então ele realiza o processo mental da razoabilização. Se a análise encaminha para outra resposta, por exemplo, a de que o paciente, na sua infância, viu o primeiro ato sexual escondido em um lugar que tinha inseto, ele pode ter transformado esse acontecimento no que Erich Fromm (2013) denominou “símbolo acidental”. Na continuidade da análise, se descobrimos que o paciente tem uma concepção religiosa e negativa da sexualidade, então ele pode realizar o processo de vinculação entre inseto e sexualidade e como esta lhe aparece como “pecado”, algo “sujo”, então precisa lavar as mãos quando vê o primeiro, símbolo do segundo.
Assim, lavar as mãos quando vê um inseto é um fenômeno psíquico estranho e por isso não pode ser aceito, mesmo porque, o paciente busca esquecer a experiência psíquica desagradável. A razoabilização usa o processo de vinculação para não deixar vir a tona a real motivação por não ter consciência da mesma, pois isso foi censurado em sua mente. A razoabilização pode ocorrer através da substituição da motivação, quando é uma razoabilização motivacional. É preciso entender que lavar as mãos é um comportamento comum e físico, mas cuja constituição é psíquica, ou seja, é a mente que comanda esse ato. Existem diversos motivos para a mente do indivíduo indicar a necessidade de lavar as mãos, desde a identificação de uma real sujeira, passando por costumes, até chegar a pressões externas. Somente em determinados casos lavar as mãos necessita de uma razoabilização. O ato de lavar as mãos em situações inusuais só é um sintoma quando há uma incongruência entre explicação e motivação. A identificação da incongruência, por sua vez, depende de uma análise totalizante do indivíduo. Por isso a razoabilização é um processo mental que atua sobre o fenômeno psíquico, tanto mental quanto social, pois este último tem uma motivação psíquica[2]. Assim, ideias, sentimentos, ações, interesses, entre dezenas de outros fenômenos, podem ser alvo de razoabilização.
A razoabilização pode ser “coletivizada”. Esse é o caso de uma sociedade em que o gosto por determinada produção artística é considerado “mau gosto” pelas classes superiores e num determinado círculo de amizades ele predomina. Os indivíduos, nesse caso, podem começar a atribuir qualidades ou vínculos inexistentes para tornar razoável seu gosto. Uma vez que essa razoabilização se torna comum para diversos indivíduos, é uma razoabilização coletiva. Geralmente, a razoabilização nasce individual e depois se torna coletiva. Isso pode se generalizar em toda uma sociedade. Aqui se pode questionar: se a razoabilização visa a aceitação social, se em determinado grupo ou conjunto da sociedade determinado pensamento ou comportamento é aceito, então por qual motivo a razoabilização é necessária. A necessidade da razoabilização coletiva reside na incongruência entre as justificativas e a realidade, pois, apesar de se poder criar verdadeiras “teorias” para explicar o fenômeno, os indivíduos percebem ou sentem que é frágil e/ou falso. A sensação de artificialidade ou falsidade sempre retorna. Aqui poderíamos parafrasear Freud e denominar isso como “o retorno do real” na mente humana.
Explicitado o conceito de razoabilização, o passo seguinte é entender o seu processo de formação. A formação da razoabilização remete ao problema da irrupção do inconveniente ou do desenvolvimento da consciência de sua existência. O inconveniente, no caso, é o que não convém socialmente. É uma introjeção da censura externa como censura interna. A forma de resolução psíquica do inconveniente pode ser variada, tal como a autocensura, o deslocamento, sublimação, formação do inconsciente, etc. O desejo sexual por uma mulher comprometida, por exemplo, pode deixar de ser inconsciente e se tornar inconveniente. Quando ele é inconsciente, pode ser sublimado e transferido para outra pessoa ou catexizado em objetos, práticas, etc. Se ele deixa de ser inconsciente, torna-se inconveniente e o conflito psíquico entre o inconsciente e a consciência transforma-se em conflito psíquico entre a consciência individual (consciência do desejo) e a consciência social (moral ou ética), ou seja, entre o inconveniente e a moral/ética. Esse conflito psíquico consciente pode ser resolvido com a autocensura, o deslocamento, sublimação ou o retorno do recalcamento. Em nenhum dos dois casos o conflito psíquico é aceitável por muito tempo e por isso uma resolução psíquica é efetivada. A censura, externa ou interna, no entanto, não é algo negativo. Por exemplo, uma pessoa com desequilíbrio psíquico pode sentir prazer em maltratar os outros, comer carne humana ou cometer homicídio. A censura é uma necessidade e é benéfica, tanto para a sociedade quanto para o indivíduo. O caráter benéfico ou maléfico da censura não é definido por sua existência e sim pelo o quê e pelo motivo dela existir. A censura da ideia de felicidade, por exemplo, é maléfica. Um dos problemas da psicanálise freudiana é que as formulações de Freud e seus exemplos sempre são negativos, o que permitiu, por exemplo, a razoabilização das perversões por parte de Marcuse (1987).
Um pensamento, um interesse ou um sentimento pode ser inconveniente para o indivíduo ou grupo. Ele gera uma sensação desagradável, uma autocensura, um mal estar e por isso a razoabilização vem para apaziguar ou fazer esquecer o inconveniente. A atração por uma mulher comprometida, o desejo de acidente de um adversário, um pensamento desejando ou imaginando algo de ruim para uma pessoa da qual se gosta, a motivação para o ato de lavar as mãos todas as vezes que vê um inseto, são, por exemplo, formas de irrupção do inconveniente. O desejo sexual pela mulher do amigo, por exemplo, pode deixar de ser inconsciente e se tornar inconveniente. Quando ele é inconsciente, pode ser sublimado e transferido para outra pessoa ou catexizado em objetos, práticas, etc. Se ele deixa de ser inconsciente, torna-se inconveniente e o conflito psíquico entre o inconsciente e a consciência transforma-se em conflito psíquico entre a consciência individual (consciência do desejo) e a consciência social (moral ou ética), ou seja, entre o inconveniente e a moral/ética. Esse conflito psíquico consciente pode ser resolvido com a autocensura, o deslocamento, sublimação ou o retorno do recalcamento. Em nenhum dos dois casos o conflito psíquico é aceitável por muito tempo e por isso uma resolução psíquica é efetivada.
A irrupção do inconveniente pode ser a emergência na mente do indivíduo do inconsciente ou da sombra. O inconsciente é uma forma nebulosa de energia psíquica que se manifesta através dos sonhos, fantasias, imaginação, atos falhos, etc., expressando as potencialidades reprimidas dos indivíduos. Uma vez que ela se manifesta conscientemente, deixa de ser inconsciente e, dependendo do caso, ou seja, da moral ou situação social, se torna inconveniente. Quando um desejo reprimido se torna consciente, mas não assume uma forma agradável, o conflito psíquico consciente gera a busca do retorno da tranquilidade, com seu esquecimento e recalcamento, ou então com sua aceitação e busca de efetivação[3].
A sombra é a energia psíquica destrutiva que é produto do excesso de repressão dos indivíduos. Freud e seus seguidores desenvolveram o conceito de inconsciente, apesar de alterações e concepções distintas (com as de Jung, Adler, Fromm, Reich, entre outros). O inconsciente aqui é o próximo do sentido freudiano, mas indo além do seu pansexualismo e entendendo como o conjunto das necessidades corporais e psíquicas (existenciais e especificamente humanas) dos indivíduos. A sombra é aqui entendida próxima ao termo junguiano (JUNG, 1975), sendo o “lado mau” do ser humano, mas não sendo compreendido como “natural” ou metafísico, e sim produto do excesso de repressão, que faz a energia do inconsciente transbordar e gerar a energia destrutiva.
Isso gera uma ambiguidade psíquica. O indivíduo, aparentemente, parece estar bem e sem problemas, mas isso ocorre a um alto custo psíquico. O alto grau de repressão ao lado da aparência de normalidade e tranquilidade gera uma ambiguidade psíquica, na qual o indivíduo desencadeia um processo autodestrutivo (sombra voltada para o interior) ou destrutivo (sombra voltada para o exterior), mas aparentemente mantém um comportamento aceitável socialmente ou, ainda, uma sublimação superdesenvolvida[4]. Isso pode desencadear um desequilíbrio psíquico sob várias formas: neurose, neuropsicose, entre outras[5]. A destrutividade é uma das principais formas de manifestação da sombra. A sociedade norte-americana, por exemplo, é um lugar onde a sombra individual aparece constantemente nos meios de comunicação, tal como se observa no que se chama “assassinato coletivo”. Um indivíduo que efetiva tal ato, ou seja, vai até uma escola ou outro lugar e atira em diversas pessoas, não o faz sem motivo.
A repressão é social, é produto do trabalho alienado, da insatisfação das necessidades corporais e psíquicas, bem como a coerção para a realização da persona – termo junguiano, que expressa o fenômeno no qual a profissão e a especialização se tornam máscaras dos indivíduos para serem reconhecidos socialmente (JUNG, 2003). Isso gera um conflito psíquico no qual o indivíduo que fica entre as suas necessidades insatisfeitas e a sociedade que reprime e impede a satisfação de suas necessidades. Como é algo externo e que o indivíduo não pode superar, então ele internaliza o conflito, gerando sua ambiguidade psíquica. As relações sociais deterioradas e o impedimento da realização de suas capacidades e potencialidades, geram um sofrimento psíquico e um crescimento intenso das energias psíquicas destrutivas. Nos casos mais graves, o conflito psíquico é reduplicado, pois além da mente ter que mediar a necessidade de satisfação e o seu impedimento social, ela passa a ter que recalcar essas necessidades e isso gera crescimento do inconsciente e da sombra, que, por sua vez, também precisam ser recalcadas. Isso gera uma situação de crescente recalcamento gerado de diversos desequilíbrios psíquicos graves. Esse processo pode ser amenizado ou intensificado dependendo do ambiente social do indivíduo[6]. Essa dinâmica psíquica num ambiente social amenizador diminui a força da sombra e dos desequilíbrios psíquicos, e num ambiente social intensificador[7], amplia tal força e torna a violência coletiva e explosões de ódio algo rotineiro e pode gerar fenômenos sociais bastante problemáticos.
A questão é que a razoabilização ocorre em situação de repressão branda e também em situação de repressão intensa. Mas, em certos casos de repressão intensa (dependendo do ambiente social), e especialmente quando o ultrapassa gerando uma situação de mais-repressão, ela torna-se insuportável e acaba gerando formações psíquicas que se manifestam através de doutrinas e concepções que justificam o extravasamento da sombra. Ou seja, um ambiente social que intensifica os desequilíbrios psíquicos, tal como realizando o impedimento do transviamento da sombra, pode gerar o seu extravasamento. Quanto menos transviamento, mais extravasamento[8].
A razoabilização, nos dois primeiros casos, significa um processo individual de tornar razoável determinados fenômenos psíquicos dos indivíduos. No segundo caso, ele vai além do individual, pois se torna uma razoabilização de fenômenos psíquicos coletivos. Essa razoabilização coletiva se materializa em doutrinas ou mesmo em ideologias, ou seja, concepções amplas e estruturadas, gerando um processo de culpabilização de indivíduos ou grupos sociais pelo fenômeno psíquico indesejável, compartilhado por um conjunto de indivíduos e projetado em outros indivíduos.
Assim, se um indivíduo branco maltrata um indivíduo negro (ou vice-versa, embora o mais comum seja o primeiro caso por razões históricas concretas), isso possui razões sociais, mas entrelaçadas com fenômenos psíquicos. O mau trato pode ser apenas um transviamento da sombra que focaliza um indivíduo determinado, escolhido por algum elemento diferencial (no caso, a raça, ou seja, a diferença física superficial entre brancos e negros e que também existe no caso dos “amarelos”, ou, em termos científicos, caucasoides, negroides e mongoloides).
A escolha tem razões sociais e individuais. As razões sociais remetem ao problema da sociedade capitalista e seu processo de relações sociais marcadas por competição, conflitos, preconceitos, que se reproduzem e chegam aos indivíduos. As razões individuais, para que esse processo se torna algo importante para o indivíduo, remete a algum acontecimento individual, que poderia ser uma “generalização afetiva”, para utilizar expressão de Michel Lobrot, ou então simplesmente um uso de preconceito social visando transbordar a sombra direcionando sua agressividade e hostilidade para um grupo social[9].
Os indivíduos que compartilham isso poderão se unir e assim formar um fenômeno psíquico coletivo. Isso vai gerar racistas brandos, por processos sociais, e racistas profundos, por processos psíquicos. Inclusive isso pode gerar divergências internas entre eles. Claro que isso ocorre ao lado de várias outras determinações, como, por exemplo, formação cultural e intelectual, classe social, informações, gravidade dos desequilíbrios psíquicos, interesses pessoais, entre inúmeras outras que atuam em cada caso individual.
Esse processo tende a gerar razoabilização individual e coletiva. A razoabilização individual ocorre quando o indivíduo busca tornar seu preconceito razoável para si mesmo e a razoabilização coletiva é quando alguns indivíduos buscam tornar tal preconceito razoável para si e para os outros, gerando representações, doutrinas e até ideologias (científicas ou não) que tentam dar sustentação ao inconveniente que é o racismo[10]. A razoabilização coletiva, uma vez existindo, acaba atingindo indivíduos semelhantes que já encontram uma razoabilização existente para tornar razoável as suas concepções.
O mesmo pode ocorrer no caso contrário e com muito mais razão, pois a experiência traumática de ter sofrido preconceito racial tende a gerar uma predisposição mental negativa em relação aos brancos (no caso do exemplo aqui citado) e também gerar generalização afetiva ou processo sociais, incluindo a competição. Assim, se alguns brancos querem vagas por se julgarem melhores que negros, esses podem pensar o mesmo ou então julgar que todas as suas derrotas possuem razão racial e ser culpa dos brancos. Assim, a razoabilização pode justificar, legitimar e oferecer uma explicação racional do ódio de determinados brancos contra negros, bem com o ressentimento de determinados negros contra brancos. A raiz social disso é a relação conflituosa e competitiva instaurada na sociedade capitalista entre brancos e negros, o que é mais comum nos Estados Unidos, mas se reproduz também em outros países, bem como o passado histórico e suas reminiscências, além dos conflitos de classes, disputas individuais e uma diversidade de outros problemas sociais que reforçam o conflito racial ou individual e que geram novos conflitos.
Por fim, cabe distinguir entre as formas de razoabilização. A razoabilização pode assumir inúmeras formas. O mais comum, na sociedade moderna, é a forma racional. O progresso capitalista, tanto o tecnológico quanto o científico, e o processo de racionalização que lhe acompanha, tende a gerar uma razoabilização racional e fazer desta a forma predominante. Até mesmo a psicanálise, que foi a primeira concepção a denunciar a razoabilização (usando outro termo), é utilizada como argumento para razoabilização. Na clínica psicanalítica, isso é muito comum e ficou mais conhecida em sua manifestação enquanto “resistência” ao tratamento psicanalítico. Muitas vezes lançam mão de textos e autores para tornar razoável sua própria resistência, tal como Freud ou qualquer outro psicanalista.
A forma sentimental é relativamente comum. Amantes e enamorados, por exemplo, podem querer tornar razoável seu ciúme excessivo e despropositado (quando isso ocorre, pois este argumento não deve ser descontextualizado para servir de razoabilização dos indivíduos na situação oposta), apelando para o “amor”. “Eu faço isso por amor”. Embora seja uma meia-verdade, isso pode tornar razoável, para o próprio indivíduo, suas ações e pensamentos. As várias formas de amor (materno, paterno, etc.) geram razoabilização sob forma sentimental.
A forma social de razoabilização é a justificativa de determinados processos psíquicos ou comportamentos por causa de algum acontecimento social. Por exemplo, o atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos pode gerar uma razoabilização social para certos fenômenos psíquicos, como o ódio e a perseguição. Sem dúvida, o acontecimento gera sentimentos e concepções, mas quando sua existência é superdimensionada, ele serve apenas como razoabilização desse processo.
A forma individual de razoabilização é aquela na qual não há generalização afetiva ou confusão entre indivíduos concretos e grupos sociais. Se um indivíduo anda na rua e outra pessoa aparece e lhe espanca sem motivo (para o andarilho, pois sempre há um motivo, incluindo os desequilíbrios psíquicos do agressor), ele tem razões reais para ter sentimentos destrutivos em relação a ela. No entanto, se um jovem apaixonado por uma garota que sente que ela gosta dele, mas que não aceita nenhuma aproximação por causa da mãe e sua oposição ao relacionamento, ele pode desenvolver várias justificativas para seu ódio. Alguns, inclusive, podem até ser verdadeiros. A razoabilização individual também pode ser através de autoatribuição: “eu tive traumas na infância”. Quanto um intelectual copia ideia de outro, realizando o famoso plágio, muitas vezes ele razoabiliza sua ação. “Eu retirei a ideia do escrito dele, mas a divulguei com meu estilo e forma de escrita, então não precisava citar a fonte”.
É possível lançar mão da razoabilização apelando para a ciência, a moral, a religião. O uso de drogas pode ser razoabilizado através da citação de alguma pesquisa científica que atribuiria benefícios físicos a ele; a discriminação de determinados indivíduos e grupos pode ser realizada apelando para a moral (“os drogados não trabalham e trabalhar é o que torna o ser humano digno”); a religião pode servir para justificar interesses e ações individuais (“eu não votei nele porque ele não é cristão, apesar de ser mais competente”).
A reflexão psicanalítica sobre a razoabilização é fundamental para a compreensão do que Jones denominou “vida cotidiana”, bem como o conjunto das relações sociais (incluindo as relações interindividuais), fenômenos psíquicos, indivíduos. A razoabilização é, portanto, o principal mecanismo de defesa elaborado pelos indivíduos e que tem grande ressonância social, gerando uma razoabilização coletiva. O conceito de razoabilização é fundamental para uma psicanálise social ou sociologia psicanalítica, bem como para a psicanálise individual. Um novo conceito abre novas perspectivas e amplia a percepção da realidade, se ele for verdadeiro. Consideramos que a razoabilização é um fenômeno real e por isso o conceito é verdadeiro e isso demonstra sua importância.


Referências

FREUD, S. The Case Schreber. Nova York: Papers, 2003.

FREUD, A. The ego and the mechanisms of defenseInternational Universities Press, 1979.

LOBROT, M. Pour ou contre l’autorite. Paris : Gauthier-Villars, 1973.

JONES, E. Rationalization in every-day life. The Journal of Abnormal Psychology. Vol. 3(3), aug-sep, 1908, pp. 161-169.

WEBER, M. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. Nova York: Routledge, 1992.

FROMM, E. The Forgotten Language: An Introduction to the Understanding of Dreams, Fairy Tales, and Myths. NovaYork, Open Road, 2013.

MARCUSE, Herbert. Eros and Civilization. A Philosophical Inquiry into Freud. 2ª edição, London: Routledge, 1987.

JUNG, C. G. Psychology and Religion: West and East. Collected Works of CG Jung, Volume 11. 3ª edição, Bollingen Fundation, 1975.

JUNG, C. G. Psychology of the Unconscious. Nova York: Dover Publications, 2003.

SCHNEIDER, Michael. Neurosis and Civilization. Nova York: Seabury, 1975.






* Autor do livro “Marxism and Psychoanalysis”.
[1] Aqui vamos focalizar os fenômenos psíquicos, mas é preciso não esquecer que o comportamento derivado dos fenômenos psíquicos também necessita e é alvo de razoabilização. Como as duas coisas estão muito próximas, então não faremos nenhuma forte distinção, apesar do foco nos fenômenos psíquicos.
[2] Isso exclui, obviamente, uma grande diversidade de casos, como, por exemplo, os costumes e a pressão social. Se uma sociedade forma o costume de lavar as mãos ao verem insetos, então não há incongruência e nem sintoma, mesmo porque, nesse caso, não há necessidade de razoabilização, já que o fenômeno psíquico motivador é razoável nessa sociedade. Nesse caso, não lavar as mãos é que é passível de razoabilização, pois este é o acontecimento cuja motivação psíquica necessita se tornar razoável.
[3] Em casos mais suaves, pode ocorrer um recalcamento relativamente tranquilo e aceitação pode gerar um sentimento de culpa ameno, como no exemplo do desejo sexual por uma pessoa comprometida, embora isso varie dependendo de qual é a relação com tal pessoa e a outra com a qual está comprometida e derivado disso qual conflito que se estabelece, bem como do tipo de relação existente e universo psíquico dos envolvidos. Em casos mais graves, o recalcamento ou a aceitação pode gerar desequilíbrios psíquicos.
[4] A sublimação superdesenvolvida significa o apego doentio ao trabalho e profissão, já identificados por Jung (2003), sendo o desenvolvimento de uma persona que não significa autorrealização humana, mas tão-somente aceitação social, pode ser eficaz por muito tempo, mas pode também gerar efeitos psicossomáticos e explosões violentas quando se torna insuportável para o indivíduo. A sublimação superdesenvolvida quando aponta para a autorrealização humana, minimiza esse problema e une sentimento de realização com aceitação social, tornando a possibilidade de desequilíbrio psíquico grave muito menor. A sublimação sob forma de aparência social é mais frágil e permite com mais facilidade a irrupção do retorno do reprimido, o inconveniente, ou fortes desequilíbrios psíquicos. A sublimação que coincide com a autorrealização reequilibra o desenvolvimento psíquico, pois permite ao indivíduo uma autorrealização autêntica e por isso forte o suficiente para compensar o sofrimento psíquico.
[5] As diversas manifestações de desequilíbrios psíquicos expressam uma complexa rede de motivações e sintomas. A neurose é, basicamente, a manifestação sintomática da sombra, que pode assumir graus distintos. A psicose, por sua vez, é a manifestação sintomática do inconsciente e, portanto, não é destrutiva. Essas duas formas de desequilíbrio psíquico podem se manifestar conjuntamente, com maior predomínio de uma ou outra. Quando o predomínio é da psicose, temos uma psiconeurose, e quando o predomínio é da neurose, temos uma neuropsicose. O filme de Alfred Hitcock popularizou o termo “psicose” num sentido inexato, pois o que o personagem do filme revela é uma neuropsicose, na qual há o predomínio da energia destrutiva sobre a criação de uma realidade imaginária. A análise de Schneider em sua obra Neurose e Classes Sociais aponta para uma interessante percepção desses dois fenômenos psíquicos e sua maior incidência em distintas classes sociais, sendo que os indivíduos das classes sociais desfavorecidas são mais propensos para psicoses e os das classes sociais favorecidas são mais propensas para neuroses. Poderíamos, então, apresentar a hipótese de que a emergência de psiconeurose é maior nas classes desfavorecidas e neuropsicose nas classes favorecidas, o que explica as explosões de violência “irracional” nessas últimas e maior facilidade de apoio a regimes ditatoriais ou totalitários.
[6] A psicanálise incorreu no erro de pensar a mente humana na sociedade apenas no momento de sua formação (inconsciente, desequilíbrios psíquicos, etc.) e esqueceu o papel da sociedade no seu momento de reprodução (amenização ou intensificação), o que remete ao problema do ambiente social do indivíduo. A este respeito, veja o artigo Repressão e Ambiente Social. No momento da análise individual, na clínica psicanalítica, isso promove uma exclusão da totalidade da vida individual, o que dificulta não somente a compreensão da situação psíquica do indivíduo como também de possibilidades terapêuticas.
[7] Aqui não custa recordar a diferenciação que foi apresentada no artigo já citado entre ambiente social total, a sociedade como totalidade, e ambiente social particular, o mundo circundante do indivíduo, bem como suas relações recíprocas e processos diferenciados de acordo com classe social, região, família, indivíduo, etc.
[8] Trata-se do erro comum de, por exemplo, censurar e impedir manifestações de violência e agressividade em jogos e momentos da vida que ficam no nível ficcional ou de pouco efeito social. A raiz desse erro, tanto de intelectuais quanto de governos, reside no fato de considerar que os jogos violentos em videogames, por exemplo, são geradores de violência. No fundo, eles são uma forma de transviamento (e em certos casos nem isso é, pois depende do caso e do indivíduo em questão) da sombra e sua origem reside em outro lugar. O transviamento gera um pequeno alívio, que contribui para diminuição da pressão pelo extravasamento, sua materialização em violência e agressão real. Uma vez que o transviamento é reprimido também, isso aumenta ainda mais o quantum de energia destrutiva e de sua necessidade (e tendência) de extravasamento. Ou seja, nesse caso, o ambiente social incentiva a materialização da violência.
[9] Não esquecendo as determinações sociais mais amplas, como a competição social.
[10] E o mesmo ocorre com outros casos, como outras formas de preconceito e conflitos sociais.
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