Capitalismo e Neurose
Nildo Viana*
O presente
ensaio visa discutir uma questão fundamental para a sociedade contemporânea: a
relação entre neurose e sociedade capitalista. Os estudos psicanalíticos de
Freud e dos demais psicanalistas abriram caminho para se pensar tal relação e
isto abre espaço para pensarmos o papel da neurose no processo das lutas de
classes.
A primeira
questão consiste em definir o que é a neurose e ver suas condições de
possibilidade, ou seja, como ela é produzida. Existem várias definições de
neurose e, segundo algumas dessas, há vários tipos de neurose. Freud, por
exemplo, distinguia psiconeuroses de defesa, neurose de angústia etc. No
entanto, ele não define neurose de forma clara, bem como a maioria dos
psicanalistas posteriores. Iremos aqui, inspirando em Karen Horney, mas
diferenciando-nos dela, definir neurose como um problema psíquico específico,
caracterizado por uma insegurança estrutural do indivíduo diante da sociedade,
o que gera dois mecanismos de defesa principais e complementares: a fuga e a
hostilidade.
A fuga
promove o isolamento, restrição de contatos e amizades, inibição. A hostilidade
gera agressividade e complementa o quadro anterior. O indivíduo neurótico
resolve o seu problema de insegurança estrutural fugindo e hostilizando as
pessoas, o que mantém, por um lado, um círculo de pessoas (geralmente a família
e poucas amizades) que servem de refúgio do contato com outros e a hostilidade
para os estranhos e não-eleitos em geral. Sem dúvida, a hostilidade também
ocorre junto ao círculo mais restrito de contatos, mas apenas para complementar
a necessidade de segurança através do controle, o que gera conflitos e
agressividade. Isto também promove um terceiro elemento que é uma certa rigidez
psíquica, voltada para a fuga, a agressividade, a rispidez cotidiana, a busca
de ordem e que tudo seja organizado e coerente com o seu costume, o que lhe dá
a sensação de segurança.
Por
conseguinte, esta insegurança estrutural do indivíduo que caracteriza a neurose
é entendida e manifesta através do medo, o que faz com alguns pesquisadores
focalizem este aspecto da neurose (HORNEY, 1984). A insegurança estrutural
promove no indivíduo uma vontade de fuga, de “volta ao útero”, para escapar do
mundo, criando uma necessidade exagerada de segurança. Isto promove dificuldade
de amar, relacionar, desconfiança exagerada, isolamento, agressividade, rigidez,
possessividade. Também, devido à necessidade exagerada de segurança, também
promove uma preocupação excessiva com a ordem e promove comportamentos
irracionais e restritivos de relacionamentos, nos quais a família e pessoas
próximas, são eleitas como suficientes e o afastamento de desconhecidos ou
pessoas não “confiáveis”, segundo os critérios restritos produzidos na situação
acima são os mais importantes.
No que se
refere ao mundo afetivo, acaba gerando laços afetivos restritos, afinal isto é
“mais seguro”. Da mesma forma, a possessividade garante maior segurança e a
irracionalidade do comportamento e pensamento sofre o processo que
psicanaliticamente foi denominado racionalização. Isto cria não somente
conflitos com as demais pessoas, mas também conflitos interiores, pois o desejo
de relação afetiva (no sentido amplo da palavra) e a dificuldade em concretizar
isso, devido a busca de segurança, cria uma seletividade restritiva. Essa
seletividade, para garantir confiança e controle, acaba elegendo pessoas mais
subservientes, recatadas, menos intelectualizadas ou questionadoras (ou seja,
menos ameaçadoras), se não em geral, pelo menos em relação ao indivíduo
neurótico.
No que se
refere ao processo intelectual, promove uma inibição intelectual (o que gera
uma certa segurança ao evitar exposição), o que também produz restrição na
produção intelectual, já que isso evita conflito e permite uma confiança
ilusória. Desta forma, a iniciativa e capacidade crítica e criativa acabam
sendo prejudicadas e diminuídas. A dificuldade de iniciativa e desenvolvimento
da criatividade, necessidades radicais de todo ser humano, acaba piorando a
situação do indivíduo neurótico. A capacidade crítica é obliterada, pela
insegurança geral e pelos conflitos que isso pode gerar. Isso gera também um
pensamento rígido sobre questões cotidianas, afetivas, familiares.
Esta
situação acaba também afetando os valores do indivíduo neurótico. Alguns
valores acabam sendo bastante evidentes nesse caso: família, autoridade,
subserviência, ordem. Em casos concretos, obviamente, pode haver conflitos de
valores nestes indivíduos, principalmente dependendo de outras determinações,
como consciência, sentimentos, outros valores, etc., que são mais fortes quando
derivado de pessoas significativas para tal indivíduo. Isto se deve ao complexo
problema da formação dos valores nos indivíduos concretos (VIANA, 2007) e ao
processo de informação e formação intelectual do indivíduo, entre outras
determinações.
Assim, o
indivíduo neurótico sempre está próximo ou manifesta autoritarismo,
possessividade, controle das pessoas próximas, agressividade, e, quando se
trata de relações fora deste círculo, a hostilidade é a resposta para garantir
a segurança diante do mundo ameaçador, ou então a submissão e subserviência que
solicita dos outros e, em situação desfavorável, pode fazê-lo para se sentir
seguro diante das autoridades e pessoas vistas como “ameaçadoras”. Em casos de
indivíduos concretos, a solução da submissão e subserviência pode ser mais
constante devido sua situação nas relações sociais, entre outras determinações.
Porém, é
preciso ter em vista que a neurose está ligada a uma insegurança estrutural e
não qualquer insegurança, que todos os indivíduos possuem, em maior ou menor
grau, com mais ou menos intensidade dependendo do contexto, etc. uma certa
insegurança. Trata-se de uma insegurança estrutural, que perpassa a
“personalidade” total do indivíduo. Neste sentido, é possível se pensar, como
faz Horney (1984), numa “personalidade neurótica”. Algumas pessoas neuróticas
são tão agressivas que podem desviar a percepção de sua grande insegurança,
pois assim passam a falsa sensação de que são seguras e racionalizam o seu
comportamento agressivo sem admitir sua raiz ligada à sua insegurança
estrutural, sendo que alguns destes indivíduos nem sequer possuem uma
consciência clara disso.
O que gera
a neurose? Esta é uma questão importante para entender a questão da relação
desse problema psíquico com a transformação social. A formação da neurose está
ligada ao processo de socialização repressiva-coercitiva, que promove a repressão
de determinadas potencialidades humanas, principalmente durante a infância e
juventude, aliado com uma forte coerção, ou seja, produção de comportamentos,
ideias, sentimentos, etc. A socialização repressiva impede a manifestação de
potencialidades humanas e isso, durante a infância, pode ser extremamente
prejudicial psiquicamente. Quando a repressão é muito forte, quando é uma
mais-repressão (Viana, 2008), tende a provocar desequilíbrios psíquicos. O
caráter coercitivo da socialização pode reforçar este processo e, no caso da
neurose, assume um papel complementar e fundamental.
No caso da
sociedade capitalista, a socialização impõe valores e busca instituir uma
mentalidade burguesa nos indivíduos, nos quais a competição, a busca do
sucesso, riqueza, poder, etc., se tornam fundamentais. Para conseguir realizar
isto, é necessário disciplina, estudos, dedicação e isto se sobreporá, numa
socialização comandada pela sociabilidade capitalista e mentalidade burguesa, a
liberdade e a criatividade. Em síntese, a coerção sendo forte, a repressão
também será, pois para se dedicar intensivamente ao trabalho (alienado) é
necessário o abandono de outras atividades e necessidades.
A família
acaba tendo um papel fundamental nesse processo, já que é a principal instância
de socialização. Se os valores dos pais apontam para este processo de
reprodução da mentalidade burguesa, então constitui num elemento importante
para se pensar o processo de produção de um indivíduo neurótico. A repressão
existente nesse caso não produz, necessariamente e em todos os casos, neurose
nos indivíduos submetidos a ela. Mas se isto for acompanhada por algumas outras
determinações, isto se torna cada vez mais provável. Se a mentalidade burguesa
dos pais é excessiva, então um alto grau de cobrança familiar existirá (maior
grau de coerção). Os estudos deverão sobrepor à brincadeira e a criatividade,
por exemplo. Só serão valoradas as atividades que são manifestações diretas dos
valores dominantes, e as outras serão desvaloradas. Isso tende a ser mais forte
ainda se os laços afetivos no interior da família são frios e ocorre a
depreciação dos filhos. Assim, a afetividade, a realização sentimental, é
reprimida. A depreciação e desconsideração do filho/a tende a gerar uma forte
insegurança. O neurótico geralmente aceita os valores dominantes, pelo menos
parcialmente, e nesse sentido assume para si metas que são tipicamente as da
sociabilidade capitalista e mentalidade burguesa, promovendo um anseio por
ascensão social, riqueza e poder:
Sem
descer a minúcias, as linhas gerais do círculo vicioso que surge do anelo
neurótico por poder, prestígio e posses podem ser, aproximadamente indicadas da
seguinte forma: ansiedade, hostilidade, respeito próprio abalado; anelo pelo
poder e coisas semelhantes; aumento da hostilidade e de ansiedade; tendência
para esquivar-se à competição (associada a tendências para subestimar-se);
fracassos e discrepâncias entre potencialidades e realizações (acompanhados de
inveja); incremento das idéias de grandeza (com medo da inveja); sensibilidade
exacerbada (com tendência renovada para retrair-se); aumento da hostilidade e
da ansiedade, que reinicia, novamente, todo o ciclo (HORNEY, 1984, p. 165).
Isto tudo
pode ser reforçado pela educação escolar, que pela sua estrutura já tende a um processo
de reprodução da mentalidade e sociabilidade dominantes. Porém, quando isto é
mais intenso, ou seja, quando a escola reforça em demasia a competição, os
valores dominantes, etc., tal como ocorre na educação mais tradicional,
autoritária e burocrática, a tendência para formação de indivíduos neuróticos
aumenta ainda mais.
A
singularidade individual também pode reforçar esta possibilidade. Esta
possibilidade se concretiza quando ocorre algum trauma, por exemplo. Também
pode ocorrer devido determinadas características físicas (naturais ou
acidentais, por elas mesmas ou pela percepção social das mesmas, tal como o
preconceito, etc.) ou, ainda, determinados acontecimentos, amizades, etc.,
atuam no sentido de reforçar as suas bases.
Em
síntese, quando a socialização é extremamente repressiva e coercitiva, há a
tendência de produzir indivíduos neuróticos. Se esse processo é muito intenso e
marcado por valores burgueses e não se cria nenhuma outra possibilidade de
superação parcial desse quadro, então a formação da neurose no indivíduo é o
que ocorre. A neurose é produzida nos indivíduos que, devido a mais-repressão a
que são submetidas, acabam possuindo uma sombra, energia destrutiva, bastante
poderosa. Porém, isso ocorre quando o indivíduo não consegue desenvolver sua persona, energia construtiva, seja se
destacando em atividades intelectuais, artísticas, etc. Obviamente que a
mais-repressão tende a inibir tal desenvolvimento nestas pessoas, porém, devido
outras determinações é possível que o indivíduo consiga superar esta tendência.
Desta
forma, a mais-repressão, aliada a outras determinações, especialmente uma forte
coerção, tende a promover a formação de indivíduos neuróticos. Devido aos
processos sociais acima aludidos relacionados existem certos setores da
sociedade mais propícios para desenvolvimento da neurose. Este é o caso das
classes auxiliares da burguesia (burocracia, intelectualidade, etc.) e as
mulheres. Segundo Schneider:
Já
que a posição social na família de classe média baseia-se em geral no status profissional (especialmente entre
funcionários de qualquer espécie, empregados de alto nível e ‘profissionais
liberais’) e não em propriedade geradora de capital, esse status só pode ser mantido através de qualificações similares entre
as crianças (SCHNEIDER, 1977, p. 246).
As
mulheres já são mais tendenciosamente expostas à neurose devido ao processo de
opressão da mulher e sua repressão ser maior, bem como a coerção (que pode ser
tanto no sentido da competição social como na reclusão para atividades
domésticas e cuidado dos filhos, sendo que este último caso só tende a
fortalecer a formação da neurose, se houver uma recusa ou falsa aceitação
destas atividades e/ou pouca relação afetiva com os filhos).
No caso
das classes exploradas, o que ocorre é que as situações de mais-repressão
tendem a gerar, tendencialmente, psicose e não neurose.
De
fato, Langner e Michael conseguiram provar que as perturbações psicóticas e as
características da personalidade patológica são significativamente mais
freqüentes entre as classes baixas, mas que as perturbações neuróticas, por
outro lado, são significativamente mais freqüentes nas classes média e alta (da
sociedade americana). O “Estudo de New Haven”, de Holligshead e Redlich,
demonstra também que nas classes alta e média as neuroses predominam, enquanto
que nas classes proletárias a psicose é claramente dominante (SCHNEIDER, 1977,
p. 245).
Obviamente
que não é possível concordar com a explicação que Schneider oferece para esse
quadro de repartição tendencial de desequilíbrios psíquicos pelas classes
sociais. Sua tese de que a explicação disto está no fato de que existe uma
educação mais rígida das famílias proletárias e educação mais permissiva nas
classes privilegiadas é bastante questionável. Afinal, muitas famílias das
classes privilegiadas, devido à competição social e ambição, promovem um
processo educativo altamente repressivo e rígido, enquanto que muitas famílias
proletárias são menos rígidas. Porém, existem outras determinações, tal como a
afetividade, a maior ou menor facilidade de atingir as metas educativas ou
sociais, o tipo de escola e relação familiar, etc. Na verdade, a neurose é uma
tendência mais forte nas classes privilegiadas porque nestas há um maior número
de famílias comandadas totalmente pela mentalidade burguesa e pela dinâmica da
competição desenfreada, o que provoca várias tendências que apontam para a
formação de neuroses nos filhos: laços frios ou distantes devido ao tempo
dedicado ao trabalho; exigências e cobranças excessivas, visando preparar os
filhos para a competição social. Assim, existe um alto grau de repressão e
coerção no caso das classes privilegiadas, que incentiva a formação de pessoas
neuróticas.
No caso
das famílias das classes exploradas, a realidade cotidiana sofrível, a falta de
perspectiva de ganhar a competição social, entre outras determinações, promovem
uma recusa e fuga desta realidade. A grande questão é que grande parte da
repressão não é produzida via família e sim devido a condições sociais externas
(renda baixa, por exemplo). Isso possibilita uma mais-repressão que, no
entanto, não convive com uma coerção familiar ou outras tão intensas. A baixa
coercitividade tende a não gerar uma insegurança tão intensa e sim uma
insatisfação devido ao confronto entre desejos e necessidades e sua não
realização, criando um confronto do indivíduo com sua situação social e, por
conseguinte, com sua percepção da realidade. Assim, somente em famílias de
classes exploradas marcadas por um forte domínio da mentalidade burguesa, que gera
praticamente uma forte coerção, é que – junto com outras determinações que
remete a casos concretos – pode promover a formação de neuroses.
Porém, é
preciso reconhecer que existe uma relação entre classes sociais e
desequilíbrios psíquicos. Há uma tendência entre as classes privilegiadas de
desenvolver neuroses e entre as classes exploradas em desenvolver psicoses,
quando ocorre situação de mais-repressão. Nesse aspecto, Schneider está
correto. Essa tendência dos indivíduos das classes privilegiadas desenvolverem
neurose em situação de mais-repressão, pode ser explicitada pelo fato de que se
trata de um problema psíquico que tem como efeito uma adaptação (problemática,
mas aceitável) à sociedade tal como ela se organiza. A psicose, por sua vez, já
é problema psíquico que revela inadaptação. Na concepção freudiana, o conflito
entre id e ego se resolve de forma diferente na neurose e psicose:
Segundo
Freud, na neurose o ‘id’ está em conflito com o ‘ego’, isto é, o superego, que
reprime o desejo instintivo em nome da realidade frustrante. (...). Na psicose,
ao contrário, o ego encontra-se a serviço do id, o desejo instintivo, isto é,
renuncia à realidade frustrante de modo a substituí-la por sua realidade
ilusória (SCHNEIDER, 1977, p. 244).
Em termos
freudianos, a neurose se pende para o superego e a psicose para o id
(SCHNEIDER, 1977; FREUD, 1976a). Desta forma, fica evidente que a psicose tende
a ocorrer de forma mais freqüente nas classes exploradas e a neurose nas
classes privilegiadas. A neurose se forma quando há uma mais-repressão e não há
criação, em um indivíduo concreto, de satisfação substituta ou persona forte e a psicose ocorre da
mesma forma. A diferença é que, no caso da neurose, a repressão é reforçada
pela coerção, isto é, além do impedimento de manifestação e desenvolvimento de
determinadas necessidades-potencialidades, há um processo de constrangimento
para o desenvolvimento de determinados comportamentos, atividades, valores,
sentimentos, etc., que o indivíduo não consegue materializar. No caso da
psicose, o processo de insatisfação gera uma remodelação da realidade, na qual
parte da realidade existente é substituída por uma imaginária. O indivíduo
psicótico é aquele que apresenta uma insatisfação profunda com a sua situação e
as relações sociais, mas não possui mecanismos de negação, porquanto não
compactua com os objetivos e valores postos pela mentalidade burguesa,
tornando-se inapto socialmente. A psicose produz como mecanismo de defesa a
recusa da realidade e sua remodelação imaginária.
Sendo
assim, a mais-repressão gera desequilíbrios psíquicos e estes assumem
características diferentes dependendo de outras determinações existentes. A
situação de classe e outras determinações sociais acabam proporcionando maior
tendência ao desenvolvimento de neurose ou psicose.
Agora que
já definimos neurose e seu processo de formação, é necessário observar suas
relações com a sociedade capitalista e com as lutas sociais. A relação entre
capitalismo e neurose é evidente a partir das considerações sobre o processo de
gênese deste fenômeno psíquico. A base geral da neurose é a sociedade
repressiva-coercitiva que exerce mais-repressão e um alto grau de coerção.
Obviamente que casos de neurose existiram em sociedades pré-capitalistas, tal
como o caso descrito por Freud de “neurose demoníaca”, no período de transição
do feudalismo para o capitalismo (Freud, 1976b), mas devido a processos sociais
bem diferentes e em muito menor grau.
Os
indivíduos neuróticos, tal como colocamos anteriormente, possuem processos de inibição
e dificuldades em relações afetivas, produção intelectual, etc. No que se
refere ao posicionamento político dos indivíduos a questão da consciência e
seus limites nos indivíduos neuróticos assume papel importante.
O
mundo externo não pode recusar impulsos se não for através do ego. Porém, as
percepções externas podem ser recusadas, quem sabe, com o que poderia tomar
parte de um conflito neurótico. Ao ocuparmos das neuroses traumáticas fica
demonstrado, pelo fenômeno do desmaio e o bloqueio de percepções exteriores,
que o mundo externo (as percepções) pode ser recusado. Nas psiconeuroses ocorre
um fenômeno similar: há alucinações negativas que representam a rejeição de
certa porção do mundo externo. Existe o esquecimento ou a má interpretação de
fatos externos devido objetivo de alcançar a satisfação de um desejo; há toda
classe de erros em uma “prova pela realidade”, que se produzem sob a pressão de
derivados de desejos ou temores inconscientes. Sempre que um estímulo faz
surgir sensações dolorosas, se produz uma tendência não só a rejeitar as
sensações, mas também o estímulo (FENICHEL, 1966, p. 156).
Assim, a
personalidade neurótica tem limitações para reconhecer a realidade tal como ela
é, e isso é reforçado se percebermos, como colocamos anteriormente, que este
problema psíquico atinge principalmente as classes auxiliares da burguesia, que
possuem valores dominantes e sua reprodução da mentalidade burguesa é um dos
fortes incentivos para a formação de neurose. A consciência do neurótico tende
a reproduzir sua insegurança básica, o que provoca rigidez no pensamento e
inibição em produção intelectual. Além disso, tende a provocar um excessivo
temor do que é tido como desconhecido ou estrangeiro, tanto no sentido espacial
quanto temporal (medo do outro e medo da mudança), e isto promove o desejo de
controle rígido e hostilidade para quem escapa do controle. Nesse sentido, a
pessoa neurótica tende a aderir ao pensamento conservador.
Um dos
grandes problemas é o processo de produção capitalista que tende a produzir um
grande número de pessoas neuróticas, o que significa que os problemas
individuais do neurótico possuem conseqüências sociais e políticas e que se
torna mais intenso quando isto atinge muitas pessoas e mais ainda em
determinados momentos históricos. A ascensão do nazismo na Alemanha, por
exemplo, teve como base inicial pessoas neuróticas. O pensamento nazista assume
nítidas características neuróticas. O próprio Hitler tinha uma personalidade
neurótica, embora em grau bastante elevado e acima da média de um neurótico
comum. A própria prática nazista mostra semelhança com as características
neuróticas: insegurança (nacional, medo dos “judeus” e “bolchevistas”);
hostilidade (internamente e externamente) principalmente com os “inimigos
imaginários” produzidos (VIANA, 2007), luta por superioridade (a arte nazista,
o exército nazista, “superiores”, assim como a ideologia da raça ariana
superior, que era complementada pela destruição da arte moderna, “degenerada”,
pela eutanásia e eugenia dos judeus, deficientes, etc.), posição autoritária
e/ou subserviente, inclusive no plano intelectual.
A base de
apoio do nazismo se encontrava, especialmente em seu início, justamente nas
classes auxiliares da burguesia (“classes médias” ou “pequena burguesia”,
segundo linguagem ideológica dominante). Reich defende a tese de que o
movimento fascista expressa uma união da “pequena burguesia” e relaciona isso
com a “psicologia de massa”:
Encontramos
a resposta a essa pergunta na posição dos funcionários e dos pequenos e médios
empregados. O empregado médio está numa situação econômica mais desvantajosa
que o operário médio qualificado; essa situação mais desvantajosa é em parte
compensada pela perspectiva mínima de uma carreira, mas sobretudo, para o
funcionário, pelo fato do seu futuro estar garantido para o resto da vida.
Estando assim nessa situação de dependência em relação às autoridades
estabelecidas, forma-se igualmente nessa camada uma atitude psicológica de
concorrência em relação aos colegas, que se opõe ao desenvolvimento de
solidariedade de classe. A consciência social do funcionário não se caracteriza
pela consciência de comunidade de destino com os seus colegas de trabalho, mas
pela sua posição em relação à autoridade pública e á ‘nação’. Essa posição
consiste numa completa identificação com o poder de estado, no empregado
consiste numa identificação com a empresa que serve. É tão explorado quanto o
operário. Por que razão não desenvolve como este um sentimento de
solidariedade? Devido à sua posição intermediária entre a autoridade e o
proletariado. Subalterno em relação ao topo, é frente à base o representante
dessa autoridade e, enquanto tal, goza de uma certa proteção moral (não
material). Encontramos nos sub-oficiais dos diferentes exércitos a formação
perfeita desse tipo psicológico de massa (REICH, 1974, p. 47).
O que
Reich descreve acima é a posição social das classes auxiliares, a sociabilidade
capitalista e sua expressão na mentalidade burguesa. Sem dúvida, isso expressa
os valores dominantes e sua introjeção em indivíduos pertencentes às classes
auxiliares, mas é vivido e experenciado de forma diferente por parte de
indivíduos neuróticos que sustentam a mesma posição. Nos indivíduos neuróticos,
isso se manifesta de forma mais intensa e fornece a “vanguarda” da prática
nazista. Sem dúvida, os médicos e artistas que aderiram à medicina e arte
nazistas logo de início, tendiam a ser neuróticos, e por isso o fato de
compartilhar com as práticas nazistas sem maior remorso ou resistência, o que
muitos indivíduos das classes auxiliares fariam e alguns efetivamente fizeram,
mesmo reproduzindo os valores dominantes. O mais importante é que não só Hitler
era neurótico, como também grande parte do núcleo original do nazismo era
composto por indivíduos neuróticos que ganharam apoio de outros indivíduos
neuróticos e de setores não-neuróticos das classes privilegiadas, devido ao
temor social de revolução, do bolchevismo russo, da crise, e da falta de outra
solução, devido ao fracasso da socialdemocracia e competição social
generalizada.
Em
síntese, o capitalismo produz neurose em grande parcela da população e esta
assume posições predominantemente conservadoras, reproduzindo a mentalidade dominante.
Em momentos de crise, indivíduos não-neuróticos são acometidos por maior
insegurança e assumem comportamento semelhante ao dos neuróticos e estes, nesta
situação, agravam mais ainda seu conservadorismo, hostilidade e relação
simbiótica com a autoridade (autoritarismo e subserviência).
Em casos
raros o neurótico pode se alinhar com as forças revolucionárias ou que se dizem
“progressistas”. Muitos conseguem, nesse processo, avançar e até mesmo superar
os traços mais fortes da neurose, seus sintomas mais explícitos. Porém, esses
casos são mais exceção, pois para a superação da neurose através da prática
revolucionária (a reformista não permite isso, pois logo se caracteriza como
oportunismo e forma de competição social) só ocorre quando o indivíduo consegue
superar em grande parte os valores dominantes (o que dificilmente ocorre
totalmente, mesmo se tratando de revolucionários autênticos e mais dedicados),
abandonar vários sentimentos, pensamentos, típicos da sociedade moderna ou das
classes auxiliares. Na maioria dos casos, porém, o que ocorre é a formação do
que Fromm chama “caráter rebelde” (que não é necessariamente neurótico, pois
muitos são assim devido a outras determinações, como valores, etc., sem ter
desequilíbrios psíquicos, mas isto sendo mais consciente):
Defino
o rebelde como a pessoa profundamente ressentida contra a autoridade por não
ser apreciada, amada, aceita. O rebelde deseja derrubar a autoridade devido ao
seu ressentimento e, em conseqüência, constituir-se na autoridade, em substituição
à derrubada. Muito freqüentemente, no momento mesmo em que atinge tal objetivo,
torna-se amigo da própria autoridade que combatia tão acerbamente, antes
(FROMM, 1986, p. 116).
Assim, a
neurose é um grave problema social e político, e mais ainda a existência de um
grande número de neuróticos, principalmente na perspectiva da emancipação
humana, pois é um obstáculo para ela. Sem dúvida, nestes casos a terapia
psicanalítica ameniza e não cumpre um papel totalmente conservador, mesmo
porque atinge as classes privilegiadas principalmente. Porém, a terapia
psicanalítica não é suficiente para resolver o problema da neurose individual e
apesar de amenizar e “apaziguar” indivíduos neuróticos e diminuir sua
hostilidade e capacidade destrutiva, não apresenta uma alternativa real ao não
questionar os valores dominantes e a mentalidade dominante, não reforçar a
contestação da socialização repressiva e coercitiva (familiar, escolar, etc.),
não apontar para a realização das verdadeiras necessidades-potencialidades humanas
e seus reais obstáculos ao invés de propor mera sublimação e reforço da persona.
Nesse
sentido, o movimento revolucionário (claro que esse não é o caso da
pseudo-esquerda comandada por setores das classes auxiliares da burguesia,
especialmente a burocracia, que reproduz tudo o que está na base da formação
neurótica) é uma alternativa que pode apontar para uma superação das bases
neurotizantes da sociedade capitalista – e também da situação de classe que
reforça este processo – apesar das dificuldades neste sentido, que reside nos
conflitos interiores das pessoas neuróticas. Mas além dessa ação prática
derivada da adesão que alguns indivíduos podem fazer, existem outras ações –
que não são específicas para este caso – como o combate aos valores dominantes,
a crítica das ideologias, a denúncia e recusa das organizações burocráticas,
apresentação de um projeto autogestionário de sociedade, etc., e ações mais
específicas, como a produção teórica para esclarecer as bases sociais e
capitalistas da neurose moderna, o esclarecimento do sofrimento psíquico
individual e sua impossibilidade de resolução total no interior da atual
sociedade, entre outras ações, que podem afetar a tendência neurotizante da
sociedade moderna, que é parte da luta mais geral pela emancipação humana.
O
desenvolvimento da luta operária marca, em seu próprio processo de
estabelecimento, bases para uma nova forma de sociabilidade, não fundada na
competição e sim na solidariedade, não buscando realização de necessidades
socialmente fabricadas e futilidades e sim necessidades autênticas e
essenciais, superando o processo de intensa repressão e coerção (em que pese
isto não desapareça de imediato, pois resquícios e o combate com a classe
dominante e suas classes auxiliares podem exigir certas ações, decididas, no
entanto, coletivamente, e não por dirigentes destacados da luta, o que
significa que mesmo quando isso ocorre é sob outras relações sociais e sem
autoritarismo e determinados tipos de conflitos). No processo de luta, os
valores dominantes, os sentimentos predominantes, e tudo o que constitui a
mentalidade burguesa é solapada pela hegemonia proletária, que aponta para
valores autênticos, novas relações sociais, renovação dos sentimentos, etc.
A
autonomização do proletariado e a instituição desta nova sociabilidade e formas
de consciência e organização, tendem a romper com as bases neurotizantes da
sociedade capitalista. Isto, uma vez ocorrendo, abre espaço para a superação da
neurose e psicose, entre outros desequilíbrios psíquicos. Este é um passo
fundamental para a abolição da neurose.
A
superação da neurose em determinados indivíduos é algo bastante difícil, mas
não impossível, principalmente nos casos menos graves. A superação da neurose,
como fenômeno coletivo emerge com o processo de autonomização do proletariado e
com a autogestão das lutas sociais. A superação total da neurose pressupõe a
abolição da sociedade que gera a neurose.
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