quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Capitalismo e Neurose


Capitalismo e Neurose

Nildo Viana* 



O presente ensaio visa discutir uma questão fundamental para a sociedade contemporânea: a relação entre neurose e sociedade capitalista. Os estudos psicanalíticos de Freud e dos demais psicanalistas abriram caminho para se pensar tal relação e isto abre espaço para pensarmos o papel da neurose no processo das lutas de classes.
A primeira questão consiste em definir o que é a neurose e ver suas condições de possibilidade, ou seja, como ela é produzida. Existem várias definições de neurose e, segundo algumas dessas, há vários tipos de neurose. Freud, por exemplo, distinguia psiconeuroses de defesa, neurose de angústia etc. No entanto, ele não define neurose de forma clara, bem como a maioria dos psicanalistas posteriores. Iremos aqui, inspirando em Karen Horney, mas diferenciando-nos dela, definir neurose como um problema psíquico específico, caracterizado por uma insegurança estrutural do indivíduo diante da sociedade, o que gera dois mecanismos de defesa principais e complementares: a fuga e a hostilidade.
A fuga promove o isolamento, restrição de contatos e amizades, inibição. A hostilidade gera agressividade e complementa o quadro anterior. O indivíduo neurótico resolve o seu problema de insegurança estrutural fugindo e hostilizando as pessoas, o que mantém, por um lado, um círculo de pessoas (geralmente a família e poucas amizades) que servem de refúgio do contato com outros e a hostilidade para os estranhos e não-eleitos em geral. Sem dúvida, a hostilidade também ocorre junto ao círculo mais restrito de contatos, mas apenas para complementar a necessidade de segurança através do controle, o que gera conflitos e agressividade. Isto também promove um terceiro elemento que é uma certa rigidez psíquica, voltada para a fuga, a agressividade, a rispidez cotidiana, a busca de ordem e que tudo seja organizado e coerente com o seu costume, o que lhe dá a sensação de segurança.
Por conseguinte, esta insegurança estrutural do indivíduo que caracteriza a neurose é entendida e manifesta através do medo, o que faz com alguns pesquisadores focalizem este aspecto da neurose (HORNEY, 1984). A insegurança estrutural promove no indivíduo uma vontade de fuga, de “volta ao útero”, para escapar do mundo, criando uma necessidade exagerada de segurança. Isto promove dificuldade de amar, relacionar, desconfiança exagerada, isolamento, agressividade, rigidez, possessividade. Também, devido à necessidade exagerada de segurança, também promove uma preocupação excessiva com a ordem e promove comportamentos irracionais e restritivos de relacionamentos, nos quais a família e pessoas próximas, são eleitas como suficientes e o afastamento de desconhecidos ou pessoas não “confiáveis”, segundo os critérios restritos produzidos na situação acima são os mais importantes.
No que se refere ao mundo afetivo, acaba gerando laços afetivos restritos, afinal isto é “mais seguro”. Da mesma forma, a possessividade garante maior segurança e a irracionalidade do comportamento e pensamento sofre o processo que psicanaliticamente foi denominado racionalização. Isto cria não somente conflitos com as demais pessoas, mas também conflitos interiores, pois o desejo de relação afetiva (no sentido amplo da palavra) e a dificuldade em concretizar isso, devido a busca de segurança, cria uma seletividade restritiva. Essa seletividade, para garantir confiança e controle, acaba elegendo pessoas mais subservientes, recatadas, menos intelectualizadas ou questionadoras (ou seja, menos ameaçadoras), se não em geral, pelo menos em relação ao indivíduo neurótico.
No que se refere ao processo intelectual, promove uma inibição intelectual (o que gera uma certa segurança ao evitar exposição), o que também produz restrição na produção intelectual, já que isso evita conflito e permite uma confiança ilusória. Desta forma, a iniciativa e capacidade crítica e criativa acabam sendo prejudicadas e diminuídas. A dificuldade de iniciativa e desenvolvimento da criatividade, necessidades radicais de todo ser humano, acaba piorando a situação do indivíduo neurótico. A capacidade crítica é obliterada, pela insegurança geral e pelos conflitos que isso pode gerar. Isso gera também um pensamento rígido sobre questões cotidianas, afetivas, familiares.
Esta situação acaba também afetando os valores do indivíduo neurótico. Alguns valores acabam sendo bastante evidentes nesse caso: família, autoridade, subserviência, ordem. Em casos concretos, obviamente, pode haver conflitos de valores nestes indivíduos, principalmente dependendo de outras determinações, como consciência, sentimentos, outros valores, etc., que são mais fortes quando derivado de pessoas significativas para tal indivíduo. Isto se deve ao complexo problema da formação dos valores nos indivíduos concretos (VIANA, 2007) e ao processo de informação e formação intelectual do indivíduo, entre outras determinações.
Assim, o indivíduo neurótico sempre está próximo ou manifesta autoritarismo, possessividade, controle das pessoas próximas, agressividade, e, quando se trata de relações fora deste círculo, a hostilidade é a resposta para garantir a segurança diante do mundo ameaçador, ou então a submissão e subserviência que solicita dos outros e, em situação desfavorável, pode fazê-lo para se sentir seguro diante das autoridades e pessoas vistas como “ameaçadoras”. Em casos de indivíduos concretos, a solução da submissão e subserviência pode ser mais constante devido sua situação nas relações sociais, entre outras determinações.
Porém, é preciso ter em vista que a neurose está ligada a uma insegurança estrutural e não qualquer insegurança, que todos os indivíduos possuem, em maior ou menor grau, com mais ou menos intensidade dependendo do contexto, etc. uma certa insegurança. Trata-se de uma insegurança estrutural, que perpassa a “personalidade” total do indivíduo. Neste sentido, é possível se pensar, como faz Horney (1984), numa “personalidade neurótica”. Algumas pessoas neuróticas são tão agressivas que podem desviar a percepção de sua grande insegurança, pois assim passam a falsa sensação de que são seguras e racionalizam o seu comportamento agressivo sem admitir sua raiz ligada à sua insegurança estrutural, sendo que alguns destes indivíduos nem sequer possuem uma consciência clara disso.
O que gera a neurose? Esta é uma questão importante para entender a questão da relação desse problema psíquico com a transformação social. A formação da neurose está ligada ao processo de socialização repressiva-coercitiva, que promove a repressão de determinadas potencialidades humanas, principalmente durante a infância e juventude, aliado com uma forte coerção, ou seja, produção de comportamentos, ideias, sentimentos, etc. A socialização repressiva impede a manifestação de potencialidades humanas e isso, durante a infância, pode ser extremamente prejudicial psiquicamente. Quando a repressão é muito forte, quando é uma mais-repressão (Viana, 2008), tende a provocar desequilíbrios psíquicos. O caráter coercitivo da socialização pode reforçar este processo e, no caso da neurose, assume um papel complementar e fundamental.
No caso da sociedade capitalista, a socialização impõe valores e busca instituir uma mentalidade burguesa nos indivíduos, nos quais a competição, a busca do sucesso, riqueza, poder, etc., se tornam fundamentais. Para conseguir realizar isto, é necessário disciplina, estudos, dedicação e isto se sobreporá, numa socialização comandada pela sociabilidade capitalista e mentalidade burguesa, a liberdade e a criatividade. Em síntese, a coerção sendo forte, a repressão também será, pois para se dedicar intensivamente ao trabalho (alienado) é necessário o abandono de outras atividades e necessidades.
A família acaba tendo um papel fundamental nesse processo, já que é a principal instância de socialização. Se os valores dos pais apontam para este processo de reprodução da mentalidade burguesa, então constitui num elemento importante para se pensar o processo de produção de um indivíduo neurótico. A repressão existente nesse caso não produz, necessariamente e em todos os casos, neurose nos indivíduos submetidos a ela. Mas se isto for acompanhada por algumas outras determinações, isto se torna cada vez mais provável. Se a mentalidade burguesa dos pais é excessiva, então um alto grau de cobrança familiar existirá (maior grau de coerção). Os estudos deverão sobrepor à brincadeira e a criatividade, por exemplo. Só serão valoradas as atividades que são manifestações diretas dos valores dominantes, e as outras serão desvaloradas. Isso tende a ser mais forte ainda se os laços afetivos no interior da família são frios e ocorre a depreciação dos filhos. Assim, a afetividade, a realização sentimental, é reprimida. A depreciação e desconsideração do filho/a tende a gerar uma forte insegurança. O neurótico geralmente aceita os valores dominantes, pelo menos parcialmente, e nesse sentido assume para si metas que são tipicamente as da sociabilidade capitalista e mentalidade burguesa, promovendo um anseio por ascensão social, riqueza e poder:
Sem descer a minúcias, as linhas gerais do círculo vicioso que surge do anelo neurótico por poder, prestígio e posses podem ser, aproximadamente indicadas da seguinte forma: ansiedade, hostilidade, respeito próprio abalado; anelo pelo poder e coisas semelhantes; aumento da hostilidade e de ansiedade; tendência para esquivar-se à competição (associada a tendências para subestimar-se); fracassos e discrepâncias entre potencialidades e realizações (acompanhados de inveja); incremento das idéias de grandeza (com medo da inveja); sensibilidade exacerbada (com tendência renovada para retrair-se); aumento da hostilidade e da ansiedade, que reinicia, novamente, todo o ciclo (HORNEY, 1984, p. 165).
Isto tudo pode ser reforçado pela educação escolar, que pela sua estrutura já tende a um processo de reprodução da mentalidade e sociabilidade dominantes. Porém, quando isto é mais intenso, ou seja, quando a escola reforça em demasia a competição, os valores dominantes, etc., tal como ocorre na educação mais tradicional, autoritária e burocrática, a tendência para formação de indivíduos neuróticos aumenta ainda mais.
A singularidade individual também pode reforçar esta possibilidade. Esta possibilidade se concretiza quando ocorre algum trauma, por exemplo. Também pode ocorrer devido determinadas características físicas (naturais ou acidentais, por elas mesmas ou pela percepção social das mesmas, tal como o preconceito, etc.) ou, ainda, determinados acontecimentos, amizades, etc., atuam no sentido de reforçar as suas bases.
Em síntese, quando a socialização é extremamente repressiva e coercitiva, há a tendência de produzir indivíduos neuróticos. Se esse processo é muito intenso e marcado por valores burgueses e não se cria nenhuma outra possibilidade de superação parcial desse quadro, então a formação da neurose no indivíduo é o que ocorre. A neurose é produzida nos indivíduos que, devido a mais-repressão a que são submetidas, acabam possuindo uma sombra, energia destrutiva, bastante poderosa. Porém, isso ocorre quando o indivíduo não consegue desenvolver sua persona, energia construtiva, seja se destacando em atividades intelectuais, artísticas, etc. Obviamente que a mais-repressão tende a inibir tal desenvolvimento nestas pessoas, porém, devido outras determinações é possível que o indivíduo consiga superar esta tendência.
Desta forma, a mais-repressão, aliada a outras determinações, especialmente uma forte coerção, tende a promover a formação de indivíduos neuróticos. Devido aos processos sociais acima aludidos relacionados existem certos setores da sociedade mais propícios para desenvolvimento da neurose. Este é o caso das classes auxiliares da burguesia (burocracia, intelectualidade, etc.) e as mulheres. Segundo Schneider:
Já que a posição social na família de classe média baseia-se em geral no status profissional (especialmente entre funcionários de qualquer espécie, empregados de alto nível e ‘profissionais liberais’) e não em propriedade geradora de capital, esse status só pode ser mantido através de qualificações similares entre as crianças (SCHNEIDER, 1977, p. 246).
As mulheres já são mais tendenciosamente expostas à neurose devido ao processo de opressão da mulher e sua repressão ser maior, bem como a coerção (que pode ser tanto no sentido da competição social como na reclusão para atividades domésticas e cuidado dos filhos, sendo que este último caso só tende a fortalecer a formação da neurose, se houver uma recusa ou falsa aceitação destas atividades e/ou pouca relação afetiva com os filhos).
No caso das classes exploradas, o que ocorre é que as situações de mais-repressão tendem a gerar, tendencialmente, psicose e não neurose.
De fato, Langner e Michael conseguiram provar que as perturbações psicóticas e as características da personalidade patológica são significativamente mais freqüentes entre as classes baixas, mas que as perturbações neuróticas, por outro lado, são significativamente mais freqüentes nas classes média e alta (da sociedade americana). O “Estudo de New Haven”, de Holligshead e Redlich, demonstra também que nas classes alta e média as neuroses predominam, enquanto que nas classes proletárias a psicose é claramente dominante (SCHNEIDER, 1977, p. 245).
Obviamente que não é possível concordar com a explicação que Schneider oferece para esse quadro de repartição tendencial de desequilíbrios psíquicos pelas classes sociais. Sua tese de que a explicação disto está no fato de que existe uma educação mais rígida das famílias proletárias e educação mais permissiva nas classes privilegiadas é bastante questionável. Afinal, muitas famílias das classes privilegiadas, devido à competição social e ambição, promovem um processo educativo altamente repressivo e rígido, enquanto que muitas famílias proletárias são menos rígidas. Porém, existem outras determinações, tal como a afetividade, a maior ou menor facilidade de atingir as metas educativas ou sociais, o tipo de escola e relação familiar, etc. Na verdade, a neurose é uma tendência mais forte nas classes privilegiadas porque nestas há um maior número de famílias comandadas totalmente pela mentalidade burguesa e pela dinâmica da competição desenfreada, o que provoca várias tendências que apontam para a formação de neuroses nos filhos: laços frios ou distantes devido ao tempo dedicado ao trabalho; exigências e cobranças excessivas, visando preparar os filhos para a competição social. Assim, existe um alto grau de repressão e coerção no caso das classes privilegiadas, que incentiva a formação de pessoas neuróticas.
No caso das famílias das classes exploradas, a realidade cotidiana sofrível, a falta de perspectiva de ganhar a competição social, entre outras determinações, promovem uma recusa e fuga desta realidade. A grande questão é que grande parte da repressão não é produzida via família e sim devido a condições sociais externas (renda baixa, por exemplo). Isso possibilita uma mais-repressão que, no entanto, não convive com uma coerção familiar ou outras tão intensas. A baixa coercitividade tende a não gerar uma insegurança tão intensa e sim uma insatisfação devido ao confronto entre desejos e necessidades e sua não realização, criando um confronto do indivíduo com sua situação social e, por conseguinte, com sua percepção da realidade. Assim, somente em famílias de classes exploradas marcadas por um forte domínio da mentalidade burguesa, que gera praticamente uma forte coerção, é que – junto com outras determinações que remete a casos concretos – pode promover a formação de neuroses.
Porém, é preciso reconhecer que existe uma relação entre classes sociais e desequilíbrios psíquicos. Há uma tendência entre as classes privilegiadas de desenvolver neuroses e entre as classes exploradas em desenvolver psicoses, quando ocorre situação de mais-repressão. Nesse aspecto, Schneider está correto. Essa tendência dos indivíduos das classes privilegiadas desenvolverem neurose em situação de mais-repressão, pode ser explicitada pelo fato de que se trata de um problema psíquico que tem como efeito uma adaptação (problemática, mas aceitável) à sociedade tal como ela se organiza. A psicose, por sua vez, já é problema psíquico que revela inadaptação. Na concepção freudiana, o conflito entre id e ego se resolve de forma diferente na neurose e psicose:
Segundo Freud, na neurose o ‘id’ está em conflito com o ‘ego’, isto é, o superego, que reprime o desejo instintivo em nome da realidade frustrante. (...). Na psicose, ao contrário, o ego encontra-se a serviço do id, o desejo instintivo, isto é, renuncia à realidade frustrante de modo a substituí-la por sua realidade ilusória (SCHNEIDER, 1977, p. 244).
Em termos freudianos, a neurose se pende para o superego e a psicose para o id (SCHNEIDER, 1977; FREUD, 1976a). Desta forma, fica evidente que a psicose tende a ocorrer de forma mais freqüente nas classes exploradas e a neurose nas classes privilegiadas. A neurose se forma quando há uma mais-repressão e não há criação, em um indivíduo concreto, de satisfação substituta ou persona forte e a psicose ocorre da mesma forma. A diferença é que, no caso da neurose, a repressão é reforçada pela coerção, isto é, além do impedimento de manifestação e desenvolvimento de determinadas necessidades-potencialidades, há um processo de constrangimento para o desenvolvimento de determinados comportamentos, atividades, valores, sentimentos, etc., que o indivíduo não consegue materializar. No caso da psicose, o processo de insatisfação gera uma remodelação da realidade, na qual parte da realidade existente é substituída por uma imaginária. O indivíduo psicótico é aquele que apresenta uma insatisfação profunda com a sua situação e as relações sociais, mas não possui mecanismos de negação, porquanto não compactua com os objetivos e valores postos pela mentalidade burguesa, tornando-se inapto socialmente. A psicose produz como mecanismo de defesa a recusa da realidade e sua remodelação imaginária.
Sendo assim, a mais-repressão gera desequilíbrios psíquicos e estes assumem características diferentes dependendo de outras determinações existentes. A situação de classe e outras determinações sociais acabam proporcionando maior tendência ao desenvolvimento de neurose ou psicose.
Agora que já definimos neurose e seu processo de formação, é necessário observar suas relações com a sociedade capitalista e com as lutas sociais. A relação entre capitalismo e neurose é evidente a partir das considerações sobre o processo de gênese deste fenômeno psíquico. A base geral da neurose é a sociedade repressiva-coercitiva que exerce mais-repressão e um alto grau de coerção. Obviamente que casos de neurose existiram em sociedades pré-capitalistas, tal como o caso descrito por Freud de “neurose demoníaca”, no período de transição do feudalismo para o capitalismo (Freud, 1976b), mas devido a processos sociais bem diferentes e em muito menor grau.
Os indivíduos neuróticos, tal como colocamos anteriormente, possuem processos de inibição e dificuldades em relações afetivas, produção intelectual, etc. No que se refere ao posicionamento político dos indivíduos a questão da consciência e seus limites nos indivíduos neuróticos assume papel importante.
O mundo externo não pode recusar impulsos se não for através do ego. Porém, as percepções externas podem ser recusadas, quem sabe, com o que poderia tomar parte de um conflito neurótico. Ao ocuparmos das neuroses traumáticas fica demonstrado, pelo fenômeno do desmaio e o bloqueio de percepções exteriores, que o mundo externo (as percepções) pode ser recusado. Nas psiconeuroses ocorre um fenômeno similar: há alucinações negativas que representam a rejeição de certa porção do mundo externo. Existe o esquecimento ou a má interpretação de fatos externos devido objetivo de alcançar a satisfação de um desejo; há toda classe de erros em uma “prova pela realidade”, que se produzem sob a pressão de derivados de desejos ou temores inconscientes. Sempre que um estímulo faz surgir sensações dolorosas, se produz uma tendência não só a rejeitar as sensações, mas também o estímulo (FENICHEL, 1966, p. 156).
Assim, a personalidade neurótica tem limitações para reconhecer a realidade tal como ela é, e isso é reforçado se percebermos, como colocamos anteriormente, que este problema psíquico atinge principalmente as classes auxiliares da burguesia, que possuem valores dominantes e sua reprodução da mentalidade burguesa é um dos fortes incentivos para a formação de neurose. A consciência do neurótico tende a reproduzir sua insegurança básica, o que provoca rigidez no pensamento e inibição em produção intelectual. Além disso, tende a provocar um excessivo temor do que é tido como desconhecido ou estrangeiro, tanto no sentido espacial quanto temporal (medo do outro e medo da mudança), e isto promove o desejo de controle rígido e hostilidade para quem escapa do controle. Nesse sentido, a pessoa neurótica tende a aderir ao pensamento conservador.
Um dos grandes problemas é o processo de produção capitalista que tende a produzir um grande número de pessoas neuróticas, o que significa que os problemas individuais do neurótico possuem conseqüências sociais e políticas e que se torna mais intenso quando isto atinge muitas pessoas e mais ainda em determinados momentos históricos. A ascensão do nazismo na Alemanha, por exemplo, teve como base inicial pessoas neuróticas. O pensamento nazista assume nítidas características neuróticas. O próprio Hitler tinha uma personalidade neurótica, embora em grau bastante elevado e acima da média de um neurótico comum. A própria prática nazista mostra semelhança com as características neuróticas: insegurança (nacional, medo dos “judeus” e “bolchevistas”); hostilidade (internamente e externamente) principalmente com os “inimigos imaginários” produzidos (VIANA, 2007), luta por superioridade (a arte nazista, o exército nazista, “superiores”, assim como a ideologia da raça ariana superior, que era complementada pela destruição da arte moderna, “degenerada”, pela eutanásia e eugenia dos judeus, deficientes, etc.), posição autoritária e/ou subserviente, inclusive no plano intelectual.
A base de apoio do nazismo se encontrava, especialmente em seu início, justamente nas classes auxiliares da burguesia (“classes médias” ou “pequena burguesia”, segundo linguagem ideológica dominante). Reich defende a tese de que o movimento fascista expressa uma união da “pequena burguesia” e relaciona isso com a “psicologia de massa”:
Encontramos a resposta a essa pergunta na posição dos funcionários e dos pequenos e médios empregados. O empregado médio está numa situação econômica mais desvantajosa que o operário médio qualificado; essa situação mais desvantajosa é em parte compensada pela perspectiva mínima de uma carreira, mas sobretudo, para o funcionário, pelo fato do seu futuro estar garantido para o resto da vida. Estando assim nessa situação de dependência em relação às autoridades estabelecidas, forma-se igualmente nessa camada uma atitude psicológica de concorrência em relação aos colegas, que se opõe ao desenvolvimento de solidariedade de classe. A consciência social do funcionário não se caracteriza pela consciência de comunidade de destino com os seus colegas de trabalho, mas pela sua posição em relação à autoridade pública e á ‘nação’. Essa posição consiste numa completa identificação com o poder de estado, no empregado consiste numa identificação com a empresa que serve. É tão explorado quanto o operário. Por que razão não desenvolve como este um sentimento de solidariedade? Devido à sua posição intermediária entre a autoridade e o proletariado. Subalterno em relação ao topo, é frente à base o representante dessa autoridade e, enquanto tal, goza de uma certa proteção moral (não material). Encontramos nos sub-oficiais dos diferentes exércitos a formação perfeita desse tipo psicológico de massa (REICH, 1974, p. 47).
O que Reich descreve acima é a posição social das classes auxiliares, a sociabilidade capitalista e sua expressão na mentalidade burguesa. Sem dúvida, isso expressa os valores dominantes e sua introjeção em indivíduos pertencentes às classes auxiliares, mas é vivido e experenciado de forma diferente por parte de indivíduos neuróticos que sustentam a mesma posição. Nos indivíduos neuróticos, isso se manifesta de forma mais intensa e fornece a “vanguarda” da prática nazista. Sem dúvida, os médicos e artistas que aderiram à medicina e arte nazistas logo de início, tendiam a ser neuróticos, e por isso o fato de compartilhar com as práticas nazistas sem maior remorso ou resistência, o que muitos indivíduos das classes auxiliares fariam e alguns efetivamente fizeram, mesmo reproduzindo os valores dominantes. O mais importante é que não só Hitler era neurótico, como também grande parte do núcleo original do nazismo era composto por indivíduos neuróticos que ganharam apoio de outros indivíduos neuróticos e de setores não-neuróticos das classes privilegiadas, devido ao temor social de revolução, do bolchevismo russo, da crise, e da falta de outra solução, devido ao fracasso da socialdemocracia e competição social generalizada.
Em síntese, o capitalismo produz neurose em grande parcela da população e esta assume posições predominantemente conservadoras, reproduzindo a mentalidade dominante. Em momentos de crise, indivíduos não-neuróticos são acometidos por maior insegurança e assumem comportamento semelhante ao dos neuróticos e estes, nesta situação, agravam mais ainda seu conservadorismo, hostilidade e relação simbiótica com a autoridade (autoritarismo e subserviência).
Em casos raros o neurótico pode se alinhar com as forças revolucionárias ou que se dizem “progressistas”. Muitos conseguem, nesse processo, avançar e até mesmo superar os traços mais fortes da neurose, seus sintomas mais explícitos. Porém, esses casos são mais exceção, pois para a superação da neurose através da prática revolucionária (a reformista não permite isso, pois logo se caracteriza como oportunismo e forma de competição social) só ocorre quando o indivíduo consegue superar em grande parte os valores dominantes (o que dificilmente ocorre totalmente, mesmo se tratando de revolucionários autênticos e mais dedicados), abandonar vários sentimentos, pensamentos, típicos da sociedade moderna ou das classes auxiliares. Na maioria dos casos, porém, o que ocorre é a formação do que Fromm chama “caráter rebelde” (que não é necessariamente neurótico, pois muitos são assim devido a outras determinações, como valores, etc., sem ter desequilíbrios psíquicos, mas isto sendo mais consciente):
Defino o rebelde como a pessoa profundamente ressentida contra a autoridade por não ser apreciada, amada, aceita. O rebelde deseja derrubar a autoridade devido ao seu ressentimento e, em conseqüência, constituir-se na autoridade, em substituição à derrubada. Muito freqüentemente, no momento mesmo em que atinge tal objetivo, torna-se amigo da própria autoridade que combatia tão acerbamente, antes (FROMM, 1986, p. 116).
Assim, a neurose é um grave problema social e político, e mais ainda a existência de um grande número de neuróticos, principalmente na perspectiva da emancipação humana, pois é um obstáculo para ela. Sem dúvida, nestes casos a terapia psicanalítica ameniza e não cumpre um papel totalmente conservador, mesmo porque atinge as classes privilegiadas principalmente. Porém, a terapia psicanalítica não é suficiente para resolver o problema da neurose individual e apesar de amenizar e “apaziguar” indivíduos neuróticos e diminuir sua hostilidade e capacidade destrutiva, não apresenta uma alternativa real ao não questionar os valores dominantes e a mentalidade dominante, não reforçar a contestação da socialização repressiva e coercitiva (familiar, escolar, etc.), não apontar para a realização das verdadeiras necessidades-potencialidades humanas e seus reais obstáculos ao invés de propor mera sublimação e reforço da persona.
Nesse sentido, o movimento revolucionário (claro que esse não é o caso da pseudo-esquerda comandada por setores das classes auxiliares da burguesia, especialmente a burocracia, que reproduz tudo o que está na base da formação neurótica) é uma alternativa que pode apontar para uma superação das bases neurotizantes da sociedade capitalista – e também da situação de classe que reforça este processo – apesar das dificuldades neste sentido, que reside nos conflitos interiores das pessoas neuróticas. Mas além dessa ação prática derivada da adesão que alguns indivíduos podem fazer, existem outras ações – que não são específicas para este caso – como o combate aos valores dominantes, a crítica das ideologias, a denúncia e recusa das organizações burocráticas, apresentação de um projeto autogestionário de sociedade, etc., e ações mais específicas, como a produção teórica para esclarecer as bases sociais e capitalistas da neurose moderna, o esclarecimento do sofrimento psíquico individual e sua impossibilidade de resolução total no interior da atual sociedade, entre outras ações, que podem afetar a tendência neurotizante da sociedade moderna, que é parte da luta mais geral pela emancipação humana.
O desenvolvimento da luta operária marca, em seu próprio processo de estabelecimento, bases para uma nova forma de sociabilidade, não fundada na competição e sim na solidariedade, não buscando realização de necessidades socialmente fabricadas e futilidades e sim necessidades autênticas e essenciais, superando o processo de intensa repressão e coerção (em que pese isto não desapareça de imediato, pois resquícios e o combate com a classe dominante e suas classes auxiliares podem exigir certas ações, decididas, no entanto, coletivamente, e não por dirigentes destacados da luta, o que significa que mesmo quando isso ocorre é sob outras relações sociais e sem autoritarismo e determinados tipos de conflitos). No processo de luta, os valores dominantes, os sentimentos predominantes, e tudo o que constitui a mentalidade burguesa é solapada pela hegemonia proletária, que aponta para valores autênticos, novas relações sociais, renovação dos sentimentos, etc.
A autonomização do proletariado e a instituição desta nova sociabilidade e formas de consciência e organização, tendem a romper com as bases neurotizantes da sociedade capitalista. Isto, uma vez ocorrendo, abre espaço para a superação da neurose e psicose, entre outros desequilíbrios psíquicos. Este é um passo fundamental para a abolição da neurose.
A superação da neurose em determinados indivíduos é algo bastante difícil, mas não impossível, principalmente nos casos menos graves. A superação da neurose, como fenômeno coletivo emerge com o processo de autonomização do proletariado e com a autogestão das lutas sociais. A superação total da neurose pressupõe a abolição da sociedade que gera a neurose.



Referências

ADLER, Alfred. El Sentido de La Vida. 6ª edição, Barcelona: Miracle, 1955.

FENICHEL, Otto. Teoría Psicoanalítica de las Neurosis. Buenos Aires: Paidós, 1966.

FREUD, Sigmund. Da Perda da Realidade na Neurose e Psicose. In: Obras Escolhidas Completas. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976b.

FREUD, Sigmund. Neurose e Psicose. In: Obras Escolhidas Completas. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976a.

FREUD, Sigmund. Uma Neurose Demoníaca do Século XVI. In: Obras Escolhidas Completas. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976c.

FROMM, Erich. Anatomia da Destrutividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

FROMM, Erich. O Dogma de Cristo. 5ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

HORNEY, Karen. A Personalidade Neurótica do Nosso Tempo. 10ª edição, São Paulo: Difel, 1984.

REICH, Wilhelm. Psicologia de Massa do Fascismo. Porto: Publicações Escorpião, 1974.

SCHNEIDER, Michael. Neurose e Classes Sociais. Uma Síntese Freudiano-Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

VIANA, Nildo. A Invenção do Inimigo Imaginário. Revista Antítese, v. 2, num. 4, p. 95-111, 2007.

VIANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia: Edições Germinal, 2002.

VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.


VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.
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A Razoabilização como Principal Mecanismo de Defesa


A Razoabilização como Principal Mecanismo de Defesa

 

 

 



Richard Ruck*




O conceito de razoabilização é um dos mais importantes para a compreensão de determinados indivíduos e da sociedade moderna. O termo “racionalização” é usado tradicionalmente na história da psicanálise e é um campo aberto para confusões, além de ser impreciso. É interessante então retomar o termo “racionalização” e seu significado e inserir a discussão sobre razoabilização e ver se a alteração seria apenas uma troca de signo ou se é também uma substituição de significado.
O termo racionalização não nasce com Freud, como a maioria imagina. O seu criador era o colaborador e biógrafo de Freud, Ernest Jones. Jones apresentou o novo termo no Primeiro Congresso Psicanalítico Internacional, em 1908 e Freud (2003) usou o termo, ao que tudo indica, pela primeira vez, em 1911, no sua reflexão sobre O Caso Schreber. Os desdobramentos posteriores não significaram grande aprofundamento sobre tal termo. A racionalização foi entendida, por Freud, como um dos mecanismos de defesa. Anna Freud (1979), posteriormente, retomou a discussão sobre mecanismos de defesa e realizou uma discussão sobre o seu processo de ocorrência.
É interessante, no entanto, recuperar o significado do termo racionalização. Em síntese, na história da psicanálise, o termo ganhou o significado de um processo mental no qual o indivíduo busca tornar aceitável e racional uma determinada ação, ideia, sentimentos, etc. Ele funciona como um mecanismo de defesa, que visa expulsar da mente a consciência adequada de sua situação, ação, motivação, objetivo e em seu lugar colocar uma explicação racional e assim conseguir se convencer da racionalidade do que busca explicar. É um mecanismo que defende o indivíduo de verdades inconvenientes.
Esse é um termo útil para a análise individual e também para a análise social. Porém, há um problema no signo (na palavra “racionalização”) e um problema no significado (no que o signo expressa), sendo este último mais importante. O problema no signo é que a palavra aponta para um processo meramente racional. Ou seja, na racionalização o indivíduo tornaria racional o seu comportamento ou ideia, pois é isto que etimologicamente significa a palavra (ação de tornar racional ou ação de racionalizar). O processo, no entanto, não é apenas racional. A racionalidade envolvida nesse processo convive com outros processos. Não se trata de tornar “racional” e sim de se tornar “aceitável” ou “razoável” para o indivíduo. É claro que, na sociedade moderna, devido o processo de racionalização (no sentido sociológico do termo), o principal critério de definir algo como aceitável ou razoável é o racional. Mas não é o único, a moral, os sentimentos (e suas contradições), os valores, são outros elementos que estão relacionados mas não podem ser reduzidos ao “racional”. Outro problema do signo, é o uso do mesmo termo com outros significados. O mais famoso é o caso do sociólogo Max Weber (1992), que usa o termo num sentido sociológico e distinto. Claro que isso poderia ser resolvido com o esclarecimento que se trata de um termo psicanalítico e não um termo sociológico. Esse problema adicional se manifesta em ter que ficar explicitando isso todas as vezes que usar o conceito, principalmente para a psicanálise social, que aborda a sociedade e a racionalização com outro significado.
A outra objeção ao termo racionalização remete ao significado. O significado do termo racionalização precisa ser ampliado, no sentido de entender sua dinâmica e seu processo de formação nos indivíduos e grupos concretos. O problema do signo é um problema também do significado. É necessária uma coerência entre signo e significado. Se o significado não é apenas o “ato de racionalizar”, então a palavra não deve indicar isso. Um signo problemático gera um significado problemático ou confusão no significado. Forma e conteúdo devem ter uma unidade e a clareza do pensamento evita confusão e ilusão.
A questão é qual é o fenômeno (significado) que o signo expressa? O signo racionalização expressa o significado que não é contido na ideia de razão ou racionalidade e por isso é uma má expressão e permite confusão e ilusão. É por isso que propomos a substituição do termo “racionalização” pelo conceito de razoabilização. Vamos nos dedicar ao esclarecimento conceitual desse termo para ficar claro o seu significado e processo de formação.
A razoabilização é o processo mental no qual o indivíduo (ou um grupo de indivíduos) busca tornar razoável determinado fenômeno psíquico ou comportamento derivado[1]. Aqui temos dois conceitos complementares: razoável e fenômeno psíquico. Considerar algo “razoável” significa entender que está no domínio da razoabilidade. A razoabilidade significa que algo é razoável, sensato, conveniente, oportuno, ou seja, de acordo com o “bom senso”, o “senso comum”, a moral, a razão, os costumes. Logo, é algo aceitável. O critério de razoabilização não é tanto a razão, embora essa seja um de seus componentes, e sim a aceitação social, pois o indivíduo tenta convencer aos outros e a si mesmo da razoabilidade dos seus fenômenos psíquicos. Em termos freudianos, a razoabilização é a proeminência do superego sobre o inconsciente.
Se um paciente afirma que tem que lavar as mãos todas as vezes que vê um inseto e nós perguntamos a razão disso, ele pode dizer que não sabe ou então que é por causa de uma experiência negativa com insetos na infância. Nesse último caso, a resposta pode ser real, verdadeira, ou pode ser razoabilização. Não é razoável lavar as mãos todas as vezes que se vê um inseto, já que o contato não é físico, mas apenas visual. Uma experiência infantil, de cair num formigueiro, ou ser picado por um inseto, pode ser real e isso é razoável. Ora, o mecanismo da razoabilização visa justamente fazer parecer razoável o que não é, mesmo que use explicação aparentemente psicanalítica. Caso ele não tenha tido tal experiência infantil ou caso não seja esse o motivo, então ele realiza o processo mental da razoabilização. Se a análise encaminha para outra resposta, por exemplo, a de que o paciente, na sua infância, viu o primeiro ato sexual escondido em um lugar que tinha inseto, ele pode ter transformado esse acontecimento no que Erich Fromm (2013) denominou “símbolo acidental”. Na continuidade da análise, se descobrimos que o paciente tem uma concepção religiosa e negativa da sexualidade, então ele pode realizar o processo de vinculação entre inseto e sexualidade e como esta lhe aparece como “pecado”, algo “sujo”, então precisa lavar as mãos quando vê o primeiro, símbolo do segundo.
Assim, lavar as mãos quando vê um inseto é um fenômeno psíquico estranho e por isso não pode ser aceito, mesmo porque, o paciente busca esquecer a experiência psíquica desagradável. A razoabilização usa o processo de vinculação para não deixar vir a tona a real motivação por não ter consciência da mesma, pois isso foi censurado em sua mente. A razoabilização pode ocorrer através da substituição da motivação, quando é uma razoabilização motivacional. É preciso entender que lavar as mãos é um comportamento comum e físico, mas cuja constituição é psíquica, ou seja, é a mente que comanda esse ato. Existem diversos motivos para a mente do indivíduo indicar a necessidade de lavar as mãos, desde a identificação de uma real sujeira, passando por costumes, até chegar a pressões externas. Somente em determinados casos lavar as mãos necessita de uma razoabilização. O ato de lavar as mãos em situações inusuais só é um sintoma quando há uma incongruência entre explicação e motivação. A identificação da incongruência, por sua vez, depende de uma análise totalizante do indivíduo. Por isso a razoabilização é um processo mental que atua sobre o fenômeno psíquico, tanto mental quanto social, pois este último tem uma motivação psíquica[2]. Assim, ideias, sentimentos, ações, interesses, entre dezenas de outros fenômenos, podem ser alvo de razoabilização.
A razoabilização pode ser “coletivizada”. Esse é o caso de uma sociedade em que o gosto por determinada produção artística é considerado “mau gosto” pelas classes superiores e num determinado círculo de amizades ele predomina. Os indivíduos, nesse caso, podem começar a atribuir qualidades ou vínculos inexistentes para tornar razoável seu gosto. Uma vez que essa razoabilização se torna comum para diversos indivíduos, é uma razoabilização coletiva. Geralmente, a razoabilização nasce individual e depois se torna coletiva. Isso pode se generalizar em toda uma sociedade. Aqui se pode questionar: se a razoabilização visa a aceitação social, se em determinado grupo ou conjunto da sociedade determinado pensamento ou comportamento é aceito, então por qual motivo a razoabilização é necessária. A necessidade da razoabilização coletiva reside na incongruência entre as justificativas e a realidade, pois, apesar de se poder criar verdadeiras “teorias” para explicar o fenômeno, os indivíduos percebem ou sentem que é frágil e/ou falso. A sensação de artificialidade ou falsidade sempre retorna. Aqui poderíamos parafrasear Freud e denominar isso como “o retorno do real” na mente humana.
Explicitado o conceito de razoabilização, o passo seguinte é entender o seu processo de formação. A formação da razoabilização remete ao problema da irrupção do inconveniente ou do desenvolvimento da consciência de sua existência. O inconveniente, no caso, é o que não convém socialmente. É uma introjeção da censura externa como censura interna. A forma de resolução psíquica do inconveniente pode ser variada, tal como a autocensura, o deslocamento, sublimação, formação do inconsciente, etc. O desejo sexual por uma mulher comprometida, por exemplo, pode deixar de ser inconsciente e se tornar inconveniente. Quando ele é inconsciente, pode ser sublimado e transferido para outra pessoa ou catexizado em objetos, práticas, etc. Se ele deixa de ser inconsciente, torna-se inconveniente e o conflito psíquico entre o inconsciente e a consciência transforma-se em conflito psíquico entre a consciência individual (consciência do desejo) e a consciência social (moral ou ética), ou seja, entre o inconveniente e a moral/ética. Esse conflito psíquico consciente pode ser resolvido com a autocensura, o deslocamento, sublimação ou o retorno do recalcamento. Em nenhum dos dois casos o conflito psíquico é aceitável por muito tempo e por isso uma resolução psíquica é efetivada. A censura, externa ou interna, no entanto, não é algo negativo. Por exemplo, uma pessoa com desequilíbrio psíquico pode sentir prazer em maltratar os outros, comer carne humana ou cometer homicídio. A censura é uma necessidade e é benéfica, tanto para a sociedade quanto para o indivíduo. O caráter benéfico ou maléfico da censura não é definido por sua existência e sim pelo o quê e pelo motivo dela existir. A censura da ideia de felicidade, por exemplo, é maléfica. Um dos problemas da psicanálise freudiana é que as formulações de Freud e seus exemplos sempre são negativos, o que permitiu, por exemplo, a razoabilização das perversões por parte de Marcuse (1987).
Um pensamento, um interesse ou um sentimento pode ser inconveniente para o indivíduo ou grupo. Ele gera uma sensação desagradável, uma autocensura, um mal estar e por isso a razoabilização vem para apaziguar ou fazer esquecer o inconveniente. A atração por uma mulher comprometida, o desejo de acidente de um adversário, um pensamento desejando ou imaginando algo de ruim para uma pessoa da qual se gosta, a motivação para o ato de lavar as mãos todas as vezes que vê um inseto, são, por exemplo, formas de irrupção do inconveniente. O desejo sexual pela mulher do amigo, por exemplo, pode deixar de ser inconsciente e se tornar inconveniente. Quando ele é inconsciente, pode ser sublimado e transferido para outra pessoa ou catexizado em objetos, práticas, etc. Se ele deixa de ser inconsciente, torna-se inconveniente e o conflito psíquico entre o inconsciente e a consciência transforma-se em conflito psíquico entre a consciência individual (consciência do desejo) e a consciência social (moral ou ética), ou seja, entre o inconveniente e a moral/ética. Esse conflito psíquico consciente pode ser resolvido com a autocensura, o deslocamento, sublimação ou o retorno do recalcamento. Em nenhum dos dois casos o conflito psíquico é aceitável por muito tempo e por isso uma resolução psíquica é efetivada.
A irrupção do inconveniente pode ser a emergência na mente do indivíduo do inconsciente ou da sombra. O inconsciente é uma forma nebulosa de energia psíquica que se manifesta através dos sonhos, fantasias, imaginação, atos falhos, etc., expressando as potencialidades reprimidas dos indivíduos. Uma vez que ela se manifesta conscientemente, deixa de ser inconsciente e, dependendo do caso, ou seja, da moral ou situação social, se torna inconveniente. Quando um desejo reprimido se torna consciente, mas não assume uma forma agradável, o conflito psíquico consciente gera a busca do retorno da tranquilidade, com seu esquecimento e recalcamento, ou então com sua aceitação e busca de efetivação[3].
A sombra é a energia psíquica destrutiva que é produto do excesso de repressão dos indivíduos. Freud e seus seguidores desenvolveram o conceito de inconsciente, apesar de alterações e concepções distintas (com as de Jung, Adler, Fromm, Reich, entre outros). O inconsciente aqui é o próximo do sentido freudiano, mas indo além do seu pansexualismo e entendendo como o conjunto das necessidades corporais e psíquicas (existenciais e especificamente humanas) dos indivíduos. A sombra é aqui entendida próxima ao termo junguiano (JUNG, 1975), sendo o “lado mau” do ser humano, mas não sendo compreendido como “natural” ou metafísico, e sim produto do excesso de repressão, que faz a energia do inconsciente transbordar e gerar a energia destrutiva.
Isso gera uma ambiguidade psíquica. O indivíduo, aparentemente, parece estar bem e sem problemas, mas isso ocorre a um alto custo psíquico. O alto grau de repressão ao lado da aparência de normalidade e tranquilidade gera uma ambiguidade psíquica, na qual o indivíduo desencadeia um processo autodestrutivo (sombra voltada para o interior) ou destrutivo (sombra voltada para o exterior), mas aparentemente mantém um comportamento aceitável socialmente ou, ainda, uma sublimação superdesenvolvida[4]. Isso pode desencadear um desequilíbrio psíquico sob várias formas: neurose, neuropsicose, entre outras[5]. A destrutividade é uma das principais formas de manifestação da sombra. A sociedade norte-americana, por exemplo, é um lugar onde a sombra individual aparece constantemente nos meios de comunicação, tal como se observa no que se chama “assassinato coletivo”. Um indivíduo que efetiva tal ato, ou seja, vai até uma escola ou outro lugar e atira em diversas pessoas, não o faz sem motivo.
A repressão é social, é produto do trabalho alienado, da insatisfação das necessidades corporais e psíquicas, bem como a coerção para a realização da persona – termo junguiano, que expressa o fenômeno no qual a profissão e a especialização se tornam máscaras dos indivíduos para serem reconhecidos socialmente (JUNG, 2003). Isso gera um conflito psíquico no qual o indivíduo que fica entre as suas necessidades insatisfeitas e a sociedade que reprime e impede a satisfação de suas necessidades. Como é algo externo e que o indivíduo não pode superar, então ele internaliza o conflito, gerando sua ambiguidade psíquica. As relações sociais deterioradas e o impedimento da realização de suas capacidades e potencialidades, geram um sofrimento psíquico e um crescimento intenso das energias psíquicas destrutivas. Nos casos mais graves, o conflito psíquico é reduplicado, pois além da mente ter que mediar a necessidade de satisfação e o seu impedimento social, ela passa a ter que recalcar essas necessidades e isso gera crescimento do inconsciente e da sombra, que, por sua vez, também precisam ser recalcadas. Isso gera uma situação de crescente recalcamento gerado de diversos desequilíbrios psíquicos graves. Esse processo pode ser amenizado ou intensificado dependendo do ambiente social do indivíduo[6]. Essa dinâmica psíquica num ambiente social amenizador diminui a força da sombra e dos desequilíbrios psíquicos, e num ambiente social intensificador[7], amplia tal força e torna a violência coletiva e explosões de ódio algo rotineiro e pode gerar fenômenos sociais bastante problemáticos.
A questão é que a razoabilização ocorre em situação de repressão branda e também em situação de repressão intensa. Mas, em certos casos de repressão intensa (dependendo do ambiente social), e especialmente quando o ultrapassa gerando uma situação de mais-repressão, ela torna-se insuportável e acaba gerando formações psíquicas que se manifestam através de doutrinas e concepções que justificam o extravasamento da sombra. Ou seja, um ambiente social que intensifica os desequilíbrios psíquicos, tal como realizando o impedimento do transviamento da sombra, pode gerar o seu extravasamento. Quanto menos transviamento, mais extravasamento[8].
A razoabilização, nos dois primeiros casos, significa um processo individual de tornar razoável determinados fenômenos psíquicos dos indivíduos. No segundo caso, ele vai além do individual, pois se torna uma razoabilização de fenômenos psíquicos coletivos. Essa razoabilização coletiva se materializa em doutrinas ou mesmo em ideologias, ou seja, concepções amplas e estruturadas, gerando um processo de culpabilização de indivíduos ou grupos sociais pelo fenômeno psíquico indesejável, compartilhado por um conjunto de indivíduos e projetado em outros indivíduos.
Assim, se um indivíduo branco maltrata um indivíduo negro (ou vice-versa, embora o mais comum seja o primeiro caso por razões históricas concretas), isso possui razões sociais, mas entrelaçadas com fenômenos psíquicos. O mau trato pode ser apenas um transviamento da sombra que focaliza um indivíduo determinado, escolhido por algum elemento diferencial (no caso, a raça, ou seja, a diferença física superficial entre brancos e negros e que também existe no caso dos “amarelos”, ou, em termos científicos, caucasoides, negroides e mongoloides).
A escolha tem razões sociais e individuais. As razões sociais remetem ao problema da sociedade capitalista e seu processo de relações sociais marcadas por competição, conflitos, preconceitos, que se reproduzem e chegam aos indivíduos. As razões individuais, para que esse processo se torna algo importante para o indivíduo, remete a algum acontecimento individual, que poderia ser uma “generalização afetiva”, para utilizar expressão de Michel Lobrot, ou então simplesmente um uso de preconceito social visando transbordar a sombra direcionando sua agressividade e hostilidade para um grupo social[9].
Os indivíduos que compartilham isso poderão se unir e assim formar um fenômeno psíquico coletivo. Isso vai gerar racistas brandos, por processos sociais, e racistas profundos, por processos psíquicos. Inclusive isso pode gerar divergências internas entre eles. Claro que isso ocorre ao lado de várias outras determinações, como, por exemplo, formação cultural e intelectual, classe social, informações, gravidade dos desequilíbrios psíquicos, interesses pessoais, entre inúmeras outras que atuam em cada caso individual.
Esse processo tende a gerar razoabilização individual e coletiva. A razoabilização individual ocorre quando o indivíduo busca tornar seu preconceito razoável para si mesmo e a razoabilização coletiva é quando alguns indivíduos buscam tornar tal preconceito razoável para si e para os outros, gerando representações, doutrinas e até ideologias (científicas ou não) que tentam dar sustentação ao inconveniente que é o racismo[10]. A razoabilização coletiva, uma vez existindo, acaba atingindo indivíduos semelhantes que já encontram uma razoabilização existente para tornar razoável as suas concepções.
O mesmo pode ocorrer no caso contrário e com muito mais razão, pois a experiência traumática de ter sofrido preconceito racial tende a gerar uma predisposição mental negativa em relação aos brancos (no caso do exemplo aqui citado) e também gerar generalização afetiva ou processo sociais, incluindo a competição. Assim, se alguns brancos querem vagas por se julgarem melhores que negros, esses podem pensar o mesmo ou então julgar que todas as suas derrotas possuem razão racial e ser culpa dos brancos. Assim, a razoabilização pode justificar, legitimar e oferecer uma explicação racional do ódio de determinados brancos contra negros, bem com o ressentimento de determinados negros contra brancos. A raiz social disso é a relação conflituosa e competitiva instaurada na sociedade capitalista entre brancos e negros, o que é mais comum nos Estados Unidos, mas se reproduz também em outros países, bem como o passado histórico e suas reminiscências, além dos conflitos de classes, disputas individuais e uma diversidade de outros problemas sociais que reforçam o conflito racial ou individual e que geram novos conflitos.
Por fim, cabe distinguir entre as formas de razoabilização. A razoabilização pode assumir inúmeras formas. O mais comum, na sociedade moderna, é a forma racional. O progresso capitalista, tanto o tecnológico quanto o científico, e o processo de racionalização que lhe acompanha, tende a gerar uma razoabilização racional e fazer desta a forma predominante. Até mesmo a psicanálise, que foi a primeira concepção a denunciar a razoabilização (usando outro termo), é utilizada como argumento para razoabilização. Na clínica psicanalítica, isso é muito comum e ficou mais conhecida em sua manifestação enquanto “resistência” ao tratamento psicanalítico. Muitas vezes lançam mão de textos e autores para tornar razoável sua própria resistência, tal como Freud ou qualquer outro psicanalista.
A forma sentimental é relativamente comum. Amantes e enamorados, por exemplo, podem querer tornar razoável seu ciúme excessivo e despropositado (quando isso ocorre, pois este argumento não deve ser descontextualizado para servir de razoabilização dos indivíduos na situação oposta), apelando para o “amor”. “Eu faço isso por amor”. Embora seja uma meia-verdade, isso pode tornar razoável, para o próprio indivíduo, suas ações e pensamentos. As várias formas de amor (materno, paterno, etc.) geram razoabilização sob forma sentimental.
A forma social de razoabilização é a justificativa de determinados processos psíquicos ou comportamentos por causa de algum acontecimento social. Por exemplo, o atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos pode gerar uma razoabilização social para certos fenômenos psíquicos, como o ódio e a perseguição. Sem dúvida, o acontecimento gera sentimentos e concepções, mas quando sua existência é superdimensionada, ele serve apenas como razoabilização desse processo.
A forma individual de razoabilização é aquela na qual não há generalização afetiva ou confusão entre indivíduos concretos e grupos sociais. Se um indivíduo anda na rua e outra pessoa aparece e lhe espanca sem motivo (para o andarilho, pois sempre há um motivo, incluindo os desequilíbrios psíquicos do agressor), ele tem razões reais para ter sentimentos destrutivos em relação a ela. No entanto, se um jovem apaixonado por uma garota que sente que ela gosta dele, mas que não aceita nenhuma aproximação por causa da mãe e sua oposição ao relacionamento, ele pode desenvolver várias justificativas para seu ódio. Alguns, inclusive, podem até ser verdadeiros. A razoabilização individual também pode ser através de autoatribuição: “eu tive traumas na infância”. Quanto um intelectual copia ideia de outro, realizando o famoso plágio, muitas vezes ele razoabiliza sua ação. “Eu retirei a ideia do escrito dele, mas a divulguei com meu estilo e forma de escrita, então não precisava citar a fonte”.
É possível lançar mão da razoabilização apelando para a ciência, a moral, a religião. O uso de drogas pode ser razoabilizado através da citação de alguma pesquisa científica que atribuiria benefícios físicos a ele; a discriminação de determinados indivíduos e grupos pode ser realizada apelando para a moral (“os drogados não trabalham e trabalhar é o que torna o ser humano digno”); a religião pode servir para justificar interesses e ações individuais (“eu não votei nele porque ele não é cristão, apesar de ser mais competente”).
A reflexão psicanalítica sobre a razoabilização é fundamental para a compreensão do que Jones denominou “vida cotidiana”, bem como o conjunto das relações sociais (incluindo as relações interindividuais), fenômenos psíquicos, indivíduos. A razoabilização é, portanto, o principal mecanismo de defesa elaborado pelos indivíduos e que tem grande ressonância social, gerando uma razoabilização coletiva. O conceito de razoabilização é fundamental para uma psicanálise social ou sociologia psicanalítica, bem como para a psicanálise individual. Um novo conceito abre novas perspectivas e amplia a percepção da realidade, se ele for verdadeiro. Consideramos que a razoabilização é um fenômeno real e por isso o conceito é verdadeiro e isso demonstra sua importância.


Referências

FREUD, S. The Case Schreber. Nova York: Papers, 2003.

FREUD, A. The ego and the mechanisms of defenseInternational Universities Press, 1979.

LOBROT, M. Pour ou contre l’autorite. Paris : Gauthier-Villars, 1973.

JONES, E. Rationalization in every-day life. The Journal of Abnormal Psychology. Vol. 3(3), aug-sep, 1908, pp. 161-169.

WEBER, M. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. Nova York: Routledge, 1992.

FROMM, E. The Forgotten Language: An Introduction to the Understanding of Dreams, Fairy Tales, and Myths. NovaYork, Open Road, 2013.

MARCUSE, Herbert. Eros and Civilization. A Philosophical Inquiry into Freud. 2ª edição, London: Routledge, 1987.

JUNG, C. G. Psychology and Religion: West and East. Collected Works of CG Jung, Volume 11. 3ª edição, Bollingen Fundation, 1975.

JUNG, C. G. Psychology of the Unconscious. Nova York: Dover Publications, 2003.

SCHNEIDER, Michael. Neurosis and Civilization. Nova York: Seabury, 1975.






* Autor do livro “Marxism and Psychoanalysis”.
[1] Aqui vamos focalizar os fenômenos psíquicos, mas é preciso não esquecer que o comportamento derivado dos fenômenos psíquicos também necessita e é alvo de razoabilização. Como as duas coisas estão muito próximas, então não faremos nenhuma forte distinção, apesar do foco nos fenômenos psíquicos.
[2] Isso exclui, obviamente, uma grande diversidade de casos, como, por exemplo, os costumes e a pressão social. Se uma sociedade forma o costume de lavar as mãos ao verem insetos, então não há incongruência e nem sintoma, mesmo porque, nesse caso, não há necessidade de razoabilização, já que o fenômeno psíquico motivador é razoável nessa sociedade. Nesse caso, não lavar as mãos é que é passível de razoabilização, pois este é o acontecimento cuja motivação psíquica necessita se tornar razoável.
[3] Em casos mais suaves, pode ocorrer um recalcamento relativamente tranquilo e aceitação pode gerar um sentimento de culpa ameno, como no exemplo do desejo sexual por uma pessoa comprometida, embora isso varie dependendo de qual é a relação com tal pessoa e a outra com a qual está comprometida e derivado disso qual conflito que se estabelece, bem como do tipo de relação existente e universo psíquico dos envolvidos. Em casos mais graves, o recalcamento ou a aceitação pode gerar desequilíbrios psíquicos.
[4] A sublimação superdesenvolvida significa o apego doentio ao trabalho e profissão, já identificados por Jung (2003), sendo o desenvolvimento de uma persona que não significa autorrealização humana, mas tão-somente aceitação social, pode ser eficaz por muito tempo, mas pode também gerar efeitos psicossomáticos e explosões violentas quando se torna insuportável para o indivíduo. A sublimação superdesenvolvida quando aponta para a autorrealização humana, minimiza esse problema e une sentimento de realização com aceitação social, tornando a possibilidade de desequilíbrio psíquico grave muito menor. A sublimação sob forma de aparência social é mais frágil e permite com mais facilidade a irrupção do retorno do reprimido, o inconveniente, ou fortes desequilíbrios psíquicos. A sublimação que coincide com a autorrealização reequilibra o desenvolvimento psíquico, pois permite ao indivíduo uma autorrealização autêntica e por isso forte o suficiente para compensar o sofrimento psíquico.
[5] As diversas manifestações de desequilíbrios psíquicos expressam uma complexa rede de motivações e sintomas. A neurose é, basicamente, a manifestação sintomática da sombra, que pode assumir graus distintos. A psicose, por sua vez, é a manifestação sintomática do inconsciente e, portanto, não é destrutiva. Essas duas formas de desequilíbrio psíquico podem se manifestar conjuntamente, com maior predomínio de uma ou outra. Quando o predomínio é da psicose, temos uma psiconeurose, e quando o predomínio é da neurose, temos uma neuropsicose. O filme de Alfred Hitcock popularizou o termo “psicose” num sentido inexato, pois o que o personagem do filme revela é uma neuropsicose, na qual há o predomínio da energia destrutiva sobre a criação de uma realidade imaginária. A análise de Schneider em sua obra Neurose e Classes Sociais aponta para uma interessante percepção desses dois fenômenos psíquicos e sua maior incidência em distintas classes sociais, sendo que os indivíduos das classes sociais desfavorecidas são mais propensos para psicoses e os das classes sociais favorecidas são mais propensas para neuroses. Poderíamos, então, apresentar a hipótese de que a emergência de psiconeurose é maior nas classes desfavorecidas e neuropsicose nas classes favorecidas, o que explica as explosões de violência “irracional” nessas últimas e maior facilidade de apoio a regimes ditatoriais ou totalitários.
[6] A psicanálise incorreu no erro de pensar a mente humana na sociedade apenas no momento de sua formação (inconsciente, desequilíbrios psíquicos, etc.) e esqueceu o papel da sociedade no seu momento de reprodução (amenização ou intensificação), o que remete ao problema do ambiente social do indivíduo. A este respeito, veja o artigo Repressão e Ambiente Social. No momento da análise individual, na clínica psicanalítica, isso promove uma exclusão da totalidade da vida individual, o que dificulta não somente a compreensão da situação psíquica do indivíduo como também de possibilidades terapêuticas.
[7] Aqui não custa recordar a diferenciação que foi apresentada no artigo já citado entre ambiente social total, a sociedade como totalidade, e ambiente social particular, o mundo circundante do indivíduo, bem como suas relações recíprocas e processos diferenciados de acordo com classe social, região, família, indivíduo, etc.
[8] Trata-se do erro comum de, por exemplo, censurar e impedir manifestações de violência e agressividade em jogos e momentos da vida que ficam no nível ficcional ou de pouco efeito social. A raiz desse erro, tanto de intelectuais quanto de governos, reside no fato de considerar que os jogos violentos em videogames, por exemplo, são geradores de violência. No fundo, eles são uma forma de transviamento (e em certos casos nem isso é, pois depende do caso e do indivíduo em questão) da sombra e sua origem reside em outro lugar. O transviamento gera um pequeno alívio, que contribui para diminuição da pressão pelo extravasamento, sua materialização em violência e agressão real. Uma vez que o transviamento é reprimido também, isso aumenta ainda mais o quantum de energia destrutiva e de sua necessidade (e tendência) de extravasamento. Ou seja, nesse caso, o ambiente social incentiva a materialização da violência.
[9] Não esquecendo as determinações sociais mais amplas, como a competição social.
[10] E o mesmo ocorre com outros casos, como outras formas de preconceito e conflitos sociais.
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