MARXISMO
E PSICANÁLISE SEGUNDO ANTON PANNEKOEK
Nildo
Viana
Anton Pannekoek foi um dos mais importantes pensadores
marxistas do século 19. A sua contribuição para a teoria dos conselhos
operários é inquestionável (PANNEKOEK, 1977; PANNEKOEK, 2012). A retomada do
caráter revolucionário do pensamento marxista foi um de seus méritos e dos
demais integrantes da corrente denominada comunismo de conselhos. Podemos dizer
que o pensamento de Pannekoek se organiza a partir de dois aspectos
fundamentais: um é a preocupação com a organização e a outra é a preocupação
com a consciência no movimento revolucionário do proletariado. Pannekoek
enfatizou a necessidade de consciência e organização por parte do proletariado
e dedicou muitas páginas para trabalhar com esses elementos. No entanto, a
interpretação autonomista do seu pensamento acabou evitando uma parte
fundamental de sua concepção, a respeito da importância da consciência, e
focalizou apenas a sua discussão sobre a organização, os conselhos operários (e
a crítica das organizações burocráticas, tal como a sua crítica aos partidos e
sindicatos).
O texto “Marxismo e Psicologia”, um título
problemático, já que o tema abordado por ele remete para uma discussão sobre a
psicanálise e não psicologia, publicado em 1938, aponta para uma das reflexões
de Pannekoek sobre a questão da consciência, embora não seja o seu foco e sim
as posições de alguns “freudo-marxistas”. Esse texto é interessante por tocar
numa questão fundamental, a relação entre marxismo e psicanálise. Por isso é
importante a leitura e análise desse breve texto.
Não efetivaremos uma síntese do texto de Pannekoek, mas
apenas apontaremos alguns pontos básicos para reflexões. O primeiro ponto é a
motivação de Pannekoek para entrar na questão da relação entre marxismo e
psicanálise. O segundo ponto é a interpretação que ele efetiva da psicanálise,
o que está relacionado com o terceiro, que é sua posição diante do
freudo-marxismo. O quarto e último ponto é a sua posição diante da relação
entre marxismo e psicanálise.
A principal motivação de Pannekoek em escrever tal texto
remete, provavelmente, à repercussão das tentativas de aproximação entre
marxismo e psicanálise no contexto dos anos 1930. Pannekoek cita,
fundamentalmente, Reich e Osborn. Sem dúvida, a importância dessa aproximação
ocorria não só por sua repercussão ideológica, mas também pelas iniciativas
práticas, tal como o movimento Sexpol (movimento de política sexual), do qual Wilhelm
Reich participou e foi um dos principais animadores, que existiu, inicialmente
vinculado ao Partido Comunista Alemão, nos anos 1930. As publicações de Reich
tinham um certo impacto em alguns setores da sociedade, bem como a ideia de um
freudo-marxismo se expandiu nesse período, especialmente em alguns países, tal
como na Alemanha. Sem dúvida, o lançamento do livro de Osborn (1966), Marx e
Freud (também publicado com o título “Marxismo e Psicanálise”) foi
uma das razões do breve texto de Pannekoek.
A posição de Pannekoek diante da psicanálise se manifesta em
sua reflexão sobre o freudo-marxismo. Como texto político, não há citações de
obras, o que dificulta uma análise mais profunda sobre as fontes de Pannekoek.
Não sabemos, por exemplo, se Pannekoek leu Freud ou se realizou sua
interpretação a partir de obras de comentaristas. Ao que tudo indica, Pannekoek
não leu Freud e sim se apoiou na apresentação do seu pensamento por Osborn
(1966), tal como se vê na discussão sobre o superego. Se Pannekoek leu Freud,
deve ter sido uma leitura circunstancial e sem maior aprofundamento, pois ele
comete equívocos interpretativos (geralmente os mesmos de Osborn, o que reforça
a hipótese de que ele se fundamenta nesse autor ao invés de uma leitura do
fundador da psicanálise).
Não cabe aqui comentar detalhadamente os equívocos
interpretativos de Pannekoek a respeito de Freud (e nem dos seus acertos). É
mais interessante discutir as suas reflexões sobre as questões psicanalíticas. Pannekoek
afirma que o instinto de sobrevivência[1]
precisa de meios materiais de satisfação e que o instinto sexual, que ele
denomina “necessidades que Freud chamou de libido”, pode ter suas exigências
satisfeitas “através do mecanismo da sublimação, por meio da fantasia”. Ele não
afirma que isso é uma concepção de Freud e tudo indica, apesar dele não deixar
claro, é uma posição assumida por ele diante desse processo, que, como veremos
a seguir, é um dos fundamentos de sua posição diante do freudo-marxismo. Porém,
o equívoco está em pensar que as “necessidades sexuais” não satisfeitas possam
ser, paradoxalmente, “satisfeitas” pela fantasia. A fantasia pode ser uma
“satisfação substituta” e não uma satisfação do que fica insatisfeito, o que
significa que o deslocamento não resolve o problema e por isso há o
inconsciente e o “retorno do reprimido”. O que ocorre é a substituição da
satisfação da necessidade sexual por uma outra satisfação, não-sexual, e por
isso a insatisfação continua. Ela a substitui, mas não a satisfaz. Se houvesse
a satisfação, os problemas enfrentados por Freud, tal como a neurose, não
existiriam. Pannekoek não desenvolve e nem aprofunda essas reflexões, e se o
fizesse teria que questionar a concepção freudiana (bem como as concepções
psicanalíticas alternativas de Adler, Jung, Fromm e outros).
Não poderemos aqui questionar suas afirmações sobre
“superego”, “fase de homossexualidade”, “tipos de personalidade”, entre outras,
ou, ainda, a sua confusão em torno dos desejos e superego e “irracionalidade”. Vamos
apenas colocar mais uma questão, sua acusação de simplificação por parte da
psicanálise. É provável que Pannekoek retira tal ideia da “síntese”
(problemática) de Osborn a respeito da psicanálise. Sem dúvida, em certas
questões e passagens, Freud efetiva algumas simplificações, bem como não
ultrapassa a episteme burguesa e efetiva um reducionismo. Porém, é preciso
entender que o foco de Freud é o indivíduo e que ele elabora toda uma concepção
complexa a respeito do universo psíquico (que ele denomina “aparelho psíquico”)
e ultrapassa o nível individual em algumas obras. Porém, há ziguezagues na obra
de Freud (é possível identificar três momentos, com alterações importantes no
seu pensamento), bem como correções e aprofundamentos. Por outro lado,
Pannekoek desconsidera os psicanalistas dissidentes (como Adler, Jung e
outros), que apontam outros caminhos e explicações.
Pannekoek também aborda o freudo-marxismo. No texto, ele
cita três autores considerados freudo-marxistas: Fromm, Reich e Osborn. Porém,
o seu foco é claramente Osborn. Pannekoek efetiva uma crítica especialmente aos
dois últimos. Fromm só aparece para apontar um aspecto do pensamento de Freud.
Reich aparece um pouco mais e Osborn é o grande nome. Sem dúvida, seria
fundamental ter abordado (para discutir a questão mais ampla do que a relação
entre marxismo e psicanálise, que remete para o problema da relação entre
universo psíquico e sociedade) mais amplamente a contribuição de Fromm e talvez
outros freudo-marxistas e psicanalistas. Porém, a crítica de Pannekoek a Osborn
é acertada. O acerto de Pannekoek reside tanto na crítica do vínculo de Osborn com
a concepção leninista-stalinista quando sua reflexão sobre a psicanálise e sua
suposta utilidade para o marxismo.
Porém, Pannekoek não avançou mais nessa crítica, talvez por
não ter maior aprofundamento nas concepções psicanalíticas. Se tivesse, talvez
poderia ter criticado vários pontos da interpretação de Osborn do pensamento de
Freud e sua simplificação do mesmo. Por outro lado, no entanto, Pannekoek
acerta ao criticar a relação estabelecida entre marxismo e psicanálise tendo
por pressuposto a “dialética da natureza”, o que recorda a obra positivista de
Engels (1986) e sua adoção e simplificação pelo stalinismo, gerando o
fantasmagórico diamat (“materialismo dialético”). Essa dialética
positivista não contribui para a compreensão da sociedade, do universo psíquico
dos indivíduos, para suas relações, e, portanto, é apenas mais um obstáculo
para o desenvolvimento da consciência humana que deve ser removido. As demais
críticas de Pannekoek a Osborn são corretas, desde que não se confunda o que
diz esse autor com a psicanálise e o freudo-marxismo em geral.
Sem dúvida, Pannekoek poderia ter avançado para uma crítica
do freudo-marxismo de Wilhelm Reich. Este autor era mais freudiano do que
marxista, não apenas através da primazia da psicanálise freudiana sobre o
marxismo, mas também por reproduzir o materialismo mecanicista, bem como suas
confusões na análise da família, do fascismo, entre outras[2].
Essa outra manifestação do freudo-marxismo, no entanto, é mais profunda e útil
do que a de Osborn. Por outro lado, Fromm e outros freudo-marxistas, que
estabeleceram outras interpretações, bem como relações, entre marxismo e
psicanálise, seria importante e permitiria um maior avanço nessa discussão.
O último aspecto do texto de Pannekoek que queremos destacar
é sua posição diante da relação entre marxismo e psicanálise, o que remete para
a questão da relação entre o indivíduo e seu universo psíquico e a sociedade. A
crítica de Pannekoek a Osborn tem muitos acertos, mas termina por ser
problemático a sua limitação a esse que é, provavelmente, o pior dos
freudo-marxistas. Pannekoek observa, acertadamente, que é necessário ao invés
de usar a psicanálise para reproduzir a propaganda burguesa e usar suas
estratégias, apontar para a autonomização do proletariado. A ideia de
“politizar a vida privada” e as pseudossoluções das satisfações substitutas não
possuem nada de revolucionário e o exemplo com o qual ele termina, Kraft durch Freude (Força pela Alegria,
organização nazista voltada para o lazer) é revelador do caráter burguês e
reacionário dos adeptos da “revoluções individuais” e “liberação de
subjetividades” no interior do capitalismo.
Ao
mesmo tempo Pannekoek coloca a questão da criança e do adulto, retirando a
ênfase psicanalítica na infância. E sua ironia é digna de gargalhada: “a
conclusão lógica seria que primeiro devemos reformar a família ou, em outras
palavras, que devemos revolucionar o jardim de infância para realizar uma
revolução social”. De certo modo, Pannekoek tem razão, mas a desconsideração
pelos processos de socialização, a formação psíquica das crianças, é
problemática[3]. Otto
Rühle (2021) foi mais profundo nessa questão. A sua crítica na ênfase excessiva
na sexualidade também é correta (e isso se aplica a Reich também). Porém, a sua
fundamentação da crítica deixa a desejar. A sua contraposição entre instinto de
sobrevivência e instinto sexual, sem usar essa terminologia, aponta para a
percepção correta de que a sexualidade e as reivindicações em sua relação podem
ser atendidas ou substituídas na sociedade capitalista. Ela não é geradora de
revolução, como supôs Reich. Porém, ao afirmar que o “impulso da fome” promove uma
maior influência no sentido de reforçar o processo revolucionário, acaba
simplificando a questão. Assim se perde de vista a complexidade dos seres
humanos, bem como deixar a revolução na dependência de uma tal carência, a
fome, sob forma coletiva, significa colocar a probabilidade de sua ocorrência
diminuir drasticamente. Além disso, a fome não é suficiente para desencadear
uma revolução, apesar de que a posição de Pannekoek não se reduz a isso, mas a
formulação acabou empobrecendo a discussão, mesmo nos limites que ele coloca –
e certamente hipotético – que é tomando por base a concepção simplificadora dos
impulsos e numa divisão formal da vida emocional do ser humano.
O que
podemos perceber no texto do Pannekoek é uma limitação discursiva por se
orientar pelo discurso psicanalítico (e, pior ainda, empobrecido por Osborn) e
pelo seu objetivo de refutação das teses e conclusões de determinados autores.
Ao enfatizar a refutação de Osborn e sua psicanálise simplificadora – o que
torna os problemas realmente existentes na psicanálise freudiana ainda mais
graves – acabou exagerando suas posições, que também acabaram se tornando
simplificadoras. Obviamente que é equivocado pensar que “a verdadeira revolução
das massas deve se preocupar principalmente com a superestrutura ideológica da
sociedade”[4]
e podemos concordar com a afirmação de que a concepção segundo a qual “o
principal esforço deve ser colocado na agitação na esfera da superestrutura” significa
“convidar a uma disputa com moinhos de vento”. Porém, ao contestar o
“superestruturalismo”, corre-se o risco de cair no economicismo. Assim, é
preciso recordar que a luta de classes está em todos os lugares (KORSCH, 1973),
inclusive nas formas sociais (“superestrutura”), e que esta tem uma função
fundamental na reprodução da sociedade capitalista e, por conseguinte, é um
lugar de luta e atuação. A relação entre modo de produção e formas sociais também
precisaria ser efetivada e como esses processos estão entrelaçados num processo
revolucionário. Assim, Pannekoek, ao combater corretamente a ênfase unilateral
na “superestrutura”, acabou caindo, pelo menos pela forma que aparece no texto,
no erro oposto, que foi a ênfase unilateral na “relação econômica”.
Em
síntese, a abordagem da psicanálise por Pannekoek padece de uma compreensão
mais profunda da mesma e isso gera sua crítica mais geral e que se desdobra na
crítica do freudo-marxismo, em sua versão mais problemática e simplificada,
pois aliada ao leninismo. Da sua recusa da psicanálise e freudo-marxismo,
também decorre uma concepção limitada da relação entre universo psíquico e
sociedade. Nesse sentido, o texto de Pannekoek é uma boa contribuição para a
crítica de um freudo-marxismo limitado e ideológico, bem como de sua versão
empobrecida da psicanálise, mas é preciso que se veja também que ela tem
limites, que se manifestam na confusão entre a versão e a verdade[5].
Ou, em
outras palavras, a crítica de Pannekoek é interessante e em muitos aspectos
acertadas, mas no que se refere a uma versão simplificada da psicanálise e
freudo-marxismo e não no que se refere a estas concepções em sua complexidade.
Isso gera um problema derivado que é a posição diante da realidade, mas que é
compreensível no contexto da discussão, embora não seja aceitável e que é
necessário senso crítico para perceber isso e avançar na reflexão sobre o
processo da luta de classes e da luta pela transformação radical e total das
relações sociais.
Referências
ENGELS, Friedrich. A Dialética da
Natureza. 4a edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
KORSCH,
Karl. El Joven Marx como Filósofo Activista. In: SUBIRATS, E. (org.). Karl Korsch o el Nacimiento de uma Nueva
Época. Barcelona: Anagrama, 1973.
OSBORN, Reuben. Psicanálise e Marxismo. Rio de
Janeiro: Zahar, 1966.
PANNEKOEK,
Anton. Los Consejos Obreros. Madrid: Zero, 1977.
PANNEKOEK, Anton. Partidos,
Sindicatos e Conselhos Operários. Rio de Janeiro: Rizoma, 2012.
REICH, Wilhelm. A Revolução Sexual. 8ª edição, Rio de
Janeiro: Guanabara, 1988.
REICH, Wilhelm. O Que é a Consciência de Classe?
Lisboa: Textos Exemplares, 1976.
REICH, Wilhelm. Psicanálise de Massas do Fascismo. 2ª
edição, São Paulo: Martins Fontes, 1988.
RÜHLE, Otto. A Mente da Criança Proletária. Goiânia: Edições
Redelp, 2021.
VIANA, Nildo. Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas.
Curitiba: CRV, 2019.
VIANA, Nildo. O Modo de
Pensar Burguês. Episteme Burguesa e Episteme Marxista. Curitiba: CRV, 2018.
VIANA, Nildo. Universo
Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo:
Escuta, 2008.
[1]
Pannekoek coloca “impulso de autopreservação” e não entraremos aqui na polêmica
da tradução mais fidedigna dos termos usados por Freud, entre os quais o debate
se são “instintos” ou “pulsões” – ou, ainda, impulsos –, pois consideramos que
instintos é mais adequado e nos posicionamos a favor dos que defendem tal
concepção.
[2]
As análises mecanicistas de Reich podem ser vistas em obras como Psicologia
de Massas do Fascismo e O que é Consciência de Classe? (REICH, 1976;
REICH, 1988). Isso não retira alguns méritos de algumas de suas reflexões, tal
como a crítica da contrarrevolução na Rússia em sua obra A Revolução Sexual
(REICH, 1988).
[3]
E,
nos casos individuais, não é possível desconsiderar a importância da infância,
embora ela seja relativa dependendo dos indivíduos concretos. Não foi sem
motivo que Sartre (1968) ironizou os “marxistas” que consideram que o
indivíduo só passaria a existir quando recebia o seu primeiro salário. E tal
importância pode ser coletiva, quando atinge determinada geração, possuindo efeitos
posteriores, entre outros processos. Claro que isso é diferente da posição de
Osborn e não é disso que Pannekoek está tratando mais exatamente, embora a sua
posição necessitaria ampliar a reflexão, o que poderia mudar a consideração
efetivada por ele.
[4]
Pannekoek reproduz nesse texto algo bastante comum em suas obras, que é a
imprecisão terminológica. E no próprio texto a palavra ideologia aparece com
mais de um sentido, tendo inclusive uma breve referência à ideia de “falsa
consciência”, ao mesmo tempo que usa o termo no sentido amplo (e próximo de
cultura) ao falar de “superestrutura ideológica”.
[5]
A questão do inconsciente coletivo, dos sentimentos, entre outros processos
psíquicos, são fundamentais para entender a dinâmica da luta de classes na
sociedade capitalista, inclusive como a classe dominante manipula e consegue
canalizar a insatisfação para processos que permitem a sua reprodução, bem como
é fundamental entender a força da mentalidade burguesa (VIANA, 2008) e da
episteme burguesa (VIANA, 2018; 2019). A revolução proletária, ao contrário de
todas as revoluções anteriores, pressupõe um processo de autoconsciência, cujo
auge será no processo revolucionário, mas que precisa elementos antecedentes
para atingi-lo.
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Publicação original em:
https://criticadesapiedada.com.br/2020/11/09/marxismo-e-psicologia-anton-pannekoek/