sábado, 11 de junho de 2022

MARXISMO E PSICANÁLISE SEGUNDO ANTON PANNEKOEK - NILDO VIANA

 


MARXISMO E PSICANÁLISE SEGUNDO ANTON PANNEKOEK

 

Nildo Viana

 

Anton Pannekoek foi um dos mais importantes pensadores marxistas do século 19. A sua contribuição para a teoria dos conselhos operários é inquestionável (PANNEKOEK, 1977; PANNEKOEK, 2012). A retomada do caráter revolucionário do pensamento marxista foi um de seus méritos e dos demais integrantes da corrente denominada comunismo de conselhos. Podemos dizer que o pensamento de Pannekoek se organiza a partir de dois aspectos fundamentais: um é a preocupação com a organização e a outra é a preocupação com a consciência no movimento revolucionário do proletariado. Pannekoek enfatizou a necessidade de consciência e organização por parte do proletariado e dedicou muitas páginas para trabalhar com esses elementos. No entanto, a interpretação autonomista do seu pensamento acabou evitando uma parte fundamental de sua concepção, a respeito da importância da consciência, e focalizou apenas a sua discussão sobre a organização, os conselhos operários (e a crítica das organizações burocráticas, tal como a sua crítica aos partidos e sindicatos).

O texto “Marxismo e Psicologia”, um título problemático, já que o tema abordado por ele remete para uma discussão sobre a psicanálise e não psicologia, publicado em 1938, aponta para uma das reflexões de Pannekoek sobre a questão da consciência, embora não seja o seu foco e sim as posições de alguns “freudo-marxistas”. Esse texto é interessante por tocar numa questão fundamental, a relação entre marxismo e psicanálise. Por isso é importante a leitura e análise desse breve texto.

Não efetivaremos uma síntese do texto de Pannekoek, mas apenas apontaremos alguns pontos básicos para reflexões. O primeiro ponto é a motivação de Pannekoek para entrar na questão da relação entre marxismo e psicanálise. O segundo ponto é a interpretação que ele efetiva da psicanálise, o que está relacionado com o terceiro, que é sua posição diante do freudo-marxismo. O quarto e último ponto é a sua posição diante da relação entre marxismo e psicanálise.

A principal motivação de Pannekoek em escrever tal texto remete, provavelmente, à repercussão das tentativas de aproximação entre marxismo e psicanálise no contexto dos anos 1930. Pannekoek cita, fundamentalmente, Reich e Osborn. Sem dúvida, a importância dessa aproximação ocorria não só por sua repercussão ideológica, mas também pelas iniciativas práticas, tal como o movimento Sexpol (movimento de política sexual), do qual Wilhelm Reich participou e foi um dos principais animadores, que existiu, inicialmente vinculado ao Partido Comunista Alemão, nos anos 1930. As publicações de Reich tinham um certo impacto em alguns setores da sociedade, bem como a ideia de um freudo-marxismo se expandiu nesse período, especialmente em alguns países, tal como na Alemanha. Sem dúvida, o lançamento do livro de Osborn (1966), Marx e Freud (também publicado com o título “Marxismo e Psicanálise”) foi uma das razões do breve texto de Pannekoek.

A posição de Pannekoek diante da psicanálise se manifesta em sua reflexão sobre o freudo-marxismo. Como texto político, não há citações de obras, o que dificulta uma análise mais profunda sobre as fontes de Pannekoek. Não sabemos, por exemplo, se Pannekoek leu Freud ou se realizou sua interpretação a partir de obras de comentaristas. Ao que tudo indica, Pannekoek não leu Freud e sim se apoiou na apresentação do seu pensamento por Osborn (1966), tal como se vê na discussão sobre o superego. Se Pannekoek leu Freud, deve ter sido uma leitura circunstancial e sem maior aprofundamento, pois ele comete equívocos interpretativos (geralmente os mesmos de Osborn, o que reforça a hipótese de que ele se fundamenta nesse autor ao invés de uma leitura do fundador da psicanálise).

Não cabe aqui comentar detalhadamente os equívocos interpretativos de Pannekoek a respeito de Freud (e nem dos seus acertos). É mais interessante discutir as suas reflexões sobre as questões psicanalíticas. Pannekoek afirma que o instinto de sobrevivência[1] precisa de meios materiais de satisfação e que o instinto sexual, que ele denomina “necessidades que Freud chamou de libido”, pode ter suas exigências satisfeitas “através do mecanismo da sublimação, por meio da fantasia”. Ele não afirma que isso é uma concepção de Freud e tudo indica, apesar dele não deixar claro, é uma posição assumida por ele diante desse processo, que, como veremos a seguir, é um dos fundamentos de sua posição diante do freudo-marxismo. Porém, o equívoco está em pensar que as “necessidades sexuais” não satisfeitas possam ser, paradoxalmente, “satisfeitas” pela fantasia. A fantasia pode ser uma “satisfação substituta” e não uma satisfação do que fica insatisfeito, o que significa que o deslocamento não resolve o problema e por isso há o inconsciente e o “retorno do reprimido”. O que ocorre é a substituição da satisfação da necessidade sexual por uma outra satisfação, não-sexual, e por isso a insatisfação continua. Ela a substitui, mas não a satisfaz. Se houvesse a satisfação, os problemas enfrentados por Freud, tal como a neurose, não existiriam. Pannekoek não desenvolve e nem aprofunda essas reflexões, e se o fizesse teria que questionar a concepção freudiana (bem como as concepções psicanalíticas alternativas de Adler, Jung, Fromm e outros).

Não poderemos aqui questionar suas afirmações sobre “superego”, “fase de homossexualidade”, “tipos de personalidade”, entre outras, ou, ainda, a sua confusão em torno dos desejos e superego e “irracionalidade”. Vamos apenas colocar mais uma questão, sua acusação de simplificação por parte da psicanálise. É provável que Pannekoek retira tal ideia da “síntese” (problemática) de Osborn a respeito da psicanálise. Sem dúvida, em certas questões e passagens, Freud efetiva algumas simplificações, bem como não ultrapassa a episteme burguesa e efetiva um reducionismo. Porém, é preciso entender que o foco de Freud é o indivíduo e que ele elabora toda uma concepção complexa a respeito do universo psíquico (que ele denomina “aparelho psíquico”) e ultrapassa o nível individual em algumas obras. Porém, há ziguezagues na obra de Freud (é possível identificar três momentos, com alterações importantes no seu pensamento), bem como correções e aprofundamentos. Por outro lado, Pannekoek desconsidera os psicanalistas dissidentes (como Adler, Jung e outros), que apontam outros caminhos e explicações.

Pannekoek também aborda o freudo-marxismo. No texto, ele cita três autores considerados freudo-marxistas: Fromm, Reich e Osborn. Porém, o seu foco é claramente Osborn. Pannekoek efetiva uma crítica especialmente aos dois últimos. Fromm só aparece para apontar um aspecto do pensamento de Freud. Reich aparece um pouco mais e Osborn é o grande nome. Sem dúvida, seria fundamental ter abordado (para discutir a questão mais ampla do que a relação entre marxismo e psicanálise, que remete para o problema da relação entre universo psíquico e sociedade) mais amplamente a contribuição de Fromm e talvez outros freudo-marxistas e psicanalistas. Porém, a crítica de Pannekoek a Osborn é acertada. O acerto de Pannekoek reside tanto na crítica do vínculo de Osborn com a concepção leninista-stalinista quando sua reflexão sobre a psicanálise e sua suposta utilidade para o marxismo.

Porém, Pannekoek não avançou mais nessa crítica, talvez por não ter maior aprofundamento nas concepções psicanalíticas. Se tivesse, talvez poderia ter criticado vários pontos da interpretação de Osborn do pensamento de Freud e sua simplificação do mesmo. Por outro lado, no entanto, Pannekoek acerta ao criticar a relação estabelecida entre marxismo e psicanálise tendo por pressuposto a “dialética da natureza”, o que recorda a obra positivista de Engels (1986) e sua adoção e simplificação pelo stalinismo, gerando o fantasmagórico diamat (“materialismo dialético”). Essa dialética positivista não contribui para a compreensão da sociedade, do universo psíquico dos indivíduos, para suas relações, e, portanto, é apenas mais um obstáculo para o desenvolvimento da consciência humana que deve ser removido. As demais críticas de Pannekoek a Osborn são corretas, desde que não se confunda o que diz esse autor com a psicanálise e o freudo-marxismo em geral.

Sem dúvida, Pannekoek poderia ter avançado para uma crítica do freudo-marxismo de Wilhelm Reich. Este autor era mais freudiano do que marxista, não apenas através da primazia da psicanálise freudiana sobre o marxismo, mas também por reproduzir o materialismo mecanicista, bem como suas confusões na análise da família, do fascismo, entre outras[2]. Essa outra manifestação do freudo-marxismo, no entanto, é mais profunda e útil do que a de Osborn. Por outro lado, Fromm e outros freudo-marxistas, que estabeleceram outras interpretações, bem como relações, entre marxismo e psicanálise, seria importante e permitiria um maior avanço nessa discussão.

O último aspecto do texto de Pannekoek que queremos destacar é sua posição diante da relação entre marxismo e psicanálise, o que remete para a questão da relação entre o indivíduo e seu universo psíquico e a sociedade. A crítica de Pannekoek a Osborn tem muitos acertos, mas termina por ser problemático a sua limitação a esse que é, provavelmente, o pior dos freudo-marxistas. Pannekoek observa, acertadamente, que é necessário ao invés de usar a psicanálise para reproduzir a propaganda burguesa e usar suas estratégias, apontar para a autonomização do proletariado. A ideia de “politizar a vida privada” e as pseudossoluções das satisfações substitutas não possuem nada de revolucionário e o exemplo com o qual ele termina, Kraft durch Freude (Força pela Alegria, organização nazista voltada para o lazer) é revelador do caráter burguês e reacionário dos adeptos da “revoluções individuais” e “liberação de subjetividades” no interior do capitalismo.

Ao mesmo tempo Pannekoek coloca a questão da criança e do adulto, retirando a ênfase psicanalítica na infância. E sua ironia é digna de gargalhada: “a conclusão lógica seria que primeiro devemos reformar a família ou, em outras palavras, que devemos revolucionar o jardim de infância para realizar uma revolução social”. De certo modo, Pannekoek tem razão, mas a desconsideração pelos processos de socialização, a formação psíquica das crianças, é problemática[3]. Otto Rühle (2021) foi mais profundo nessa questão. A sua crítica na ênfase excessiva na sexualidade também é correta (e isso se aplica a Reich também). Porém, a sua fundamentação da crítica deixa a desejar. A sua contraposição entre instinto de sobrevivência e instinto sexual, sem usar essa terminologia, aponta para a percepção correta de que a sexualidade e as reivindicações em sua relação podem ser atendidas ou substituídas na sociedade capitalista. Ela não é geradora de revolução, como supôs Reich. Porém, ao afirmar que o “impulso da fome” promove uma maior influência no sentido de reforçar o processo revolucionário, acaba simplificando a questão. Assim se perde de vista a complexidade dos seres humanos, bem como deixar a revolução na dependência de uma tal carência, a fome, sob forma coletiva, significa colocar a probabilidade de sua ocorrência diminuir drasticamente. Além disso, a fome não é suficiente para desencadear uma revolução, apesar de que a posição de Pannekoek não se reduz a isso, mas a formulação acabou empobrecendo a discussão, mesmo nos limites que ele coloca – e certamente hipotético – que é tomando por base a concepção simplificadora dos impulsos e numa divisão formal da vida emocional do ser humano.

O que podemos perceber no texto do Pannekoek é uma limitação discursiva por se orientar pelo discurso psicanalítico (e, pior ainda, empobrecido por Osborn) e pelo seu objetivo de refutação das teses e conclusões de determinados autores. Ao enfatizar a refutação de Osborn e sua psicanálise simplificadora – o que torna os problemas realmente existentes na psicanálise freudiana ainda mais graves – acabou exagerando suas posições, que também acabaram se tornando simplificadoras. Obviamente que é equivocado pensar que “a verdadeira revolução das massas deve se preocupar principalmente com a superestrutura ideológica da sociedade”[4] e podemos concordar com a afirmação de que a concepção segundo a qual “o principal esforço deve ser colocado na agitação na esfera da superestrutura” significa “convidar a uma disputa com moinhos de vento”. Porém, ao contestar o “superestruturalismo”, corre-se o risco de cair no economicismo. Assim, é preciso recordar que a luta de classes está em todos os lugares (KORSCH, 1973), inclusive nas formas sociais (“superestrutura”), e que esta tem uma função fundamental na reprodução da sociedade capitalista e, por conseguinte, é um lugar de luta e atuação. A relação entre modo de produção e formas sociais também precisaria ser efetivada e como esses processos estão entrelaçados num processo revolucionário. Assim, Pannekoek, ao combater corretamente a ênfase unilateral na “superestrutura”, acabou caindo, pelo menos pela forma que aparece no texto, no erro oposto, que foi a ênfase unilateral na “relação econômica”.

Em síntese, a abordagem da psicanálise por Pannekoek padece de uma compreensão mais profunda da mesma e isso gera sua crítica mais geral e que se desdobra na crítica do freudo-marxismo, em sua versão mais problemática e simplificada, pois aliada ao leninismo. Da sua recusa da psicanálise e freudo-marxismo, também decorre uma concepção limitada da relação entre universo psíquico e sociedade. Nesse sentido, o texto de Pannekoek é uma boa contribuição para a crítica de um freudo-marxismo limitado e ideológico, bem como de sua versão empobrecida da psicanálise, mas é preciso que se veja também que ela tem limites, que se manifestam na confusão entre a versão e a verdade[5].

Ou, em outras palavras, a crítica de Pannekoek é interessante e em muitos aspectos acertadas, mas no que se refere a uma versão simplificada da psicanálise e freudo-marxismo e não no que se refere a estas concepções em sua complexidade. Isso gera um problema derivado que é a posição diante da realidade, mas que é compreensível no contexto da discussão, embora não seja aceitável e que é necessário senso crítico para perceber isso e avançar na reflexão sobre o processo da luta de classes e da luta pela transformação radical e total das relações sociais.

 

 

Referências

 

ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. 4a edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

 

KORSCH, Karl. El Joven Marx como Filósofo Activista. In: SUBIRATS, E. (org.). Karl Korsch o el Nacimiento de uma Nueva Época. Barcelona: Anagrama, 1973.

 

OSBORN, Reuben. Psicanálise e Marxismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.

 

PANNEKOEK, Anton. Los Consejos Obreros. Madrid: Zero, 1977.

 

PANNEKOEK, Anton. Partidos, Sindicatos e Conselhos Operários. Rio de Janeiro: Rizoma, 2012.

 

REICH, Wilhelm. A Revolução Sexual. 8ª edição, Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

 

REICH, Wilhelm. O Que é a Consciência de Classe? Lisboa: Textos Exemplares, 1976.

 

REICH, Wilhelm. Psicanálise de Massas do Fascismo. 2ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1988.

 

RÜHLE, Otto. A Mente da Criança Proletária. Goiânia: Edições Redelp, 2021.

 

VIANA, Nildo. Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas. Curitiba: CRV, 2019.

 

VIANA, Nildo. O Modo de Pensar Burguês. Episteme Burguesa e Episteme Marxista. Curitiba: CRV, 2018.

 

VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.

 

 

 



[1] Pannekoek coloca “impulso de autopreservação” e não entraremos aqui na polêmica da tradução mais fidedigna dos termos usados por Freud, entre os quais o debate se são “instintos” ou “pulsões” – ou, ainda, impulsos –, pois consideramos que instintos é mais adequado e nos posicionamos a favor dos que defendem tal concepção.

 

[2] As análises mecanicistas de Reich podem ser vistas em obras como Psicologia de Massas do Fascismo e O que é Consciência de Classe? (REICH, 1976; REICH, 1988). Isso não retira alguns méritos de algumas de suas reflexões, tal como a crítica da contrarrevolução na Rússia em sua obra A Revolução Sexual (REICH, 1988).

[3] E, nos casos individuais, não é possível desconsiderar a importância da infância, embora ela seja relativa dependendo dos indivíduos concretos. Não foi sem motivo que Sartre (1968) ironizou os “marxistas” que consideram que o indivíduo só passaria a existir quando recebia o seu primeiro salário. E tal importância pode ser coletiva, quando atinge determinada geração, possuindo efeitos posteriores, entre outros processos. Claro que isso é diferente da posição de Osborn e não é disso que Pannekoek está tratando mais exatamente, embora a sua posição necessitaria ampliar a reflexão, o que poderia mudar a consideração efetivada por ele.

[4] Pannekoek reproduz nesse texto algo bastante comum em suas obras, que é a imprecisão terminológica. E no próprio texto a palavra ideologia aparece com mais de um sentido, tendo inclusive uma breve referência à ideia de “falsa consciência”, ao mesmo tempo que usa o termo no sentido amplo (e próximo de cultura) ao falar de “superestrutura ideológica”.

[5] A questão do inconsciente coletivo, dos sentimentos, entre outros processos psíquicos, são fundamentais para entender a dinâmica da luta de classes na sociedade capitalista, inclusive como a classe dominante manipula e consegue canalizar a insatisfação para processos que permitem a sua reprodução, bem como é fundamental entender a força da mentalidade burguesa (VIANA, 2008) e da episteme burguesa (VIANA, 2018; 2019). A revolução proletária, ao contrário de todas as revoluções anteriores, pressupõe um processo de autoconsciência, cujo auge será no processo revolucionário, mas que precisa elementos antecedentes para atingi-lo.

Publicação original em:

https://criticadesapiedada.com.br/2020/11/09/marxismo-e-psicologia-anton-pannekoek/ 

sexta-feira, 11 de maio de 2018

A Concepção Junguiana de Inconsciente Coletivo


A Concepção Junguiana de Inconsciente Coletivo*

Nildo Viana




Carl Gustav Jung foi o primeiro psicanalista a desenvolver uma concepção sistemática de inconsciente coletivo. Sem dúvida, Freud em alguns momentos fornece elementos que podem servir para uma concepção do inconsciente coletivo, tal como veremos adiante, mas coube a Jung o reconhecimento de sua existência e a elaboração de uma concepção sistemática a seu respeito. Por isso começaremos nossa análise com a contribuição de Jung.
A obra de Jung surge a partir da fundação da psicanálise por Freud. Freud foi, paulatinamente, construindo a psicanálise a partir de seu afastamento da medicina e das descobertas que proporcionaram a sua elaboração teórica. A concepção de Freud é complexa e inclui inúmeros elementos que vão se desenvolvendo e dando corpo à psicanálise. As suas teses sobre os instintos (ou “pulsões”), da repressão e do inconsciente formam a base da concepção freudiana. No entanto, Freud buscará compreender o “aparelho psíquico” a partir de dois componentes (consciência e inconsciente) e, posteriormente, três (id, ego e superego), entre outras alterações que ele provocou em sua concepção original (a ideia de existência de um “instinto de morte” é outro exemplo, pois ela só foi sustentada por ele na última fase de seu pensamento).
O grande mérito de Freud foi a descoberta do inconsciente. Freud considerava que a mente humana, ou “aparelho psíquico”, não era composto apenas pela consciência, pois possuía uma camada profunda que ele denominou inconsciente (em sua concepção tripartite do aparelho psíquico – id, ego e superego – os dois últimos elementos são conscientes e, portanto, a mudança na concepção não desmente nossa exposição).
A origem do inconsciente se encontra na repressão dos instintos. Para Freud, o ser humano possui dois conjuntos de instintos: os sexuais e os de sobrevivência (mais tarde acrescentaria o instinto de morte), embora focalizasse sua concepção principalmente nos instintos sexuais. Para ele, a civilização, para garantir sua sobrevivência, deve coagir os seres humanos ao trabalho e isto pressupõe a repressão dos instintos (sexuais). Esta repressão dos desejos sexuais, que se inicia durante a infância, é externa, realizada principalmente pelos pais. Com o passar do tempo, esta repressão é introjetada, ou seja, o próprio indivíduo, através de sua consciência moral (“superego”) se “reprime”, realizando o recalcamento, ou seja, apaga de sua consciência tais desejos.
Os desejos reprimidos, no entanto, não deixam de existir, mas tão-somente de serem conscientes. Eles ficam “escondidos” na mente humana, no inconsciente. O inconsciente, por sua vez, sempre busca se manifestar. Ele se manifesta quando a consciência fica enfraquecida, tal como durante os sonhos ou nas fantasias, mas também em outros momentos, como nos atos falhos, chistes, etc. (FREUD, 1978).
Freud vai desenvolver sua concepção de problemas psíquicos a partir desta elaboração. A neurose, por exemplo, seria produto da frustração produzida pelo recalcamento. Desta forma, a civilização e suas necessidades produzem a repressão, o recalcamento e o inconsciente (FREUD, 1978b).
Nasce, assim, a psicanálise e em torno de Freud se agruparam diversos pesquisadores, dando origem à primeira Sociedade Psicanalítica. No entanto, pouco depois da constituição da psicanálise apareceram as divergências. A concepção freudiana começou a ser questionada e substituída por concepções rivais, embora o freudismo ortodoxo continue forte até os dias atuais. A primeira grande concepção alternativa foi a de Alfred Adler. Adler discordava da centralidade fornecida por Freud aos instintos sexuais e em seu lugar iria colocar a “vontade de poder” e daí derivar um conjunto de teses, sendo que algumas se tornaram populares, tal como a do “complexo de inferioridade”, embora sua concepção tenha se tornado marginal na história posterior da psicanálise. O questionamento do “pansexualismo” de Freud realizado por Adler seria apenas o primeiro de uma série, gerando algumas dissidências, incluindo a de Jung.
A obra de Jung também é bastante complexa e nasce a partir das contribuições de Freud e Adler, que ele julga importantes, mas “unilaterais”. Jung era extremamente conservador, ao contrário de Adler, que se autodeclarava socialista. O conservadorismo de Jung era maior do que o de Freud e está relacionado com o fato de que o último tinha como preocupação fundamental a resolução de problemas individuais enquanto que o primeiro dedicava especial atenção aos problemas sociais. Daí sua consideração pela obra de Adler, que se dedicou a explicar o indivíduo pelo social.
Jung discorda de várias teses de Freud, tal como a universalidade do incesto e a primazia do “erótico-sexual”. Segundo ele, os instintos sexuais não formam a totalidade da natureza humana, embora seja um de seus aspectos principais. O erro de Freud, para ele, se encontra na sua visão “unilateral” e “exclusivista” oriunda de sua teoria sexual. Adler substituiu os instintos sexuais pelo princípio de poder, apresentando, segundo Jung, uma concepção tão unilateral e exclusivista quanto a de Freud. Jung diz que esta tese também possui um momento de verdade, tal como a de Freud, mas que elas são inconciliáveis. É preciso, segundo Jung, partir de um ponto de vista superior a elas para poder unificá-las. Para Jung, “ambas contêm verdades fundamentais” e “uma não exclui a outra”, sendo “certas, porém unilaterais” (1989, p. 33).
Jung explicará a diferença entre Freud e Adler por uma “diferença de temperamento”. Trata-se de uma diferença entre “dois tipos de espírito humano”, o tipo introvertido (Adler) e o extrovertido (Freud), tal como se encontra em sua tipologia psicológica[1]. Assim, segundo Jung, o problema é que estas duas teorias são verdadeiras, mas se aplicam apenas a casos especiais e transformá-las em “teoria global da essência” é que é o grande erro. É a partir desta “ruptura” com Freud e Adler, e ao mesmo tempo da conservação de algumas de suas teses, consideradas de “uso tópico”, que Jung elaborará sua própria concepção.
A concepção de Jung tem como momento inicial a libido. Para Freud a libido é energia sexual, concepção considerada por Jung como sendo restrita. Segundo Nise da Silveira,
enquanto Freud atribui à libido significação exclusivamente sexual, Jung denomina libido à energia psíquica tomada num sentido amplo. Energia psíquica e libido são sinônimos. Libido é apetite, é instinto permanente de vida que se manifesta pela fome, sede, sexualidade, agressividade, necessidades e interesses os mais diversos. Tudo isso está compreendido no conceito de libido (SILVEIRA, 1981, p. 41).
A energia psíquica, portanto, possui diversas manifestações. Para Jung, a mente humana é um
sistema energético relativamente fechado, possuidor de um potencial que permanece o mesmo em quantidade através de suas múltiplas manifestações, durando toda a vida de cada indivíduo. Isto vale dizer que, se a energia psíquica abandona um de seus investimentos virá reaparecer sob outra forma. No sistema psíquico a quantidade de energia é constante, varia apenas sua distribuição (SILVEIRA, 1981, p. 44).
A libido, diz Jung, “já possui seu objeto no inconsciente”, e o seu rumo não pode ser decidido pela nossa vontade, seguindo seu fluxo. Assim, a libido, seguindo seu curso natural, encontra “o caminho para o objeto que lhe é destinado”, o que só não ocorre por interferência da vontade ou por elementos externos.
Jung vai relacionar sua concepção de libido com a questão do inconsciente. Para ele, o inconsciente possui duas camadas, uma pessoal (individual) e outra coletiva.
A camada pessoal termina com as recordações infantis mais remotas; o inconsciente coletivo, porém, contém o tempo pré-infantil, isto é, os restos da vida dos antepassados. As imagens das recordações do inconsciente coletivo são imagens não preenchidas, por serem formas não vividas pessoalmente pelo indivíduo. Quando, porém, a regressão da energia psíquica ultrapassa o próprio tempo da primeira infância, penetrando nas pegadas ou na herança da vida ancestral, aí despertam os quadros mitológicos: os arquétipos (JUNG, 1989, p. 69).
Para Jung, tal como colocamos anteriormente, a libido já possui seu objeto no inconsciente (pessoal). Mas além desse inconsciente pessoal, existem “as imagens primordiais”, isto é,
a aptidão hereditária da ação humana de ser como era nos primórdios. Essa hereditariedade explica o fenômeno, no fundo surpreendente, de alguns temas e motivos de lendas se repetirem no mundo inteiro e em formas idênticas, além de explicar porque os nossos doentes mentais podem reproduzir exatamente as mesmas imagens e associações dos textos antigos (JUNG, 1989, p. 57).
Jung esclarece que tais imagens não são hereditárias. O que é realmente hereditário é a capacidade de tê-las. Jung denomina estas imagens universais e originárias como “arquétipos”. Esta camada mais profunda do inconsciente, o inconsciente coletivo, não chega à tona facilmente. Somente através de um processo de “regressão” é que ele surge na mente individual. O que provoca tal “regressão”? Ela é produto da repressão[2]. Para ele, a cultura ocidental racional nega o irracional. No entanto, “o homem não é apenas racional, não pode e nunca vai sê-lo” (JUNG, 1989, p. 64). “O irracional não deve e não pode ser extirpado. Os deuses não podem e não devem morrer” (JUNG, 1989, p. 64).
Assim, Jung encontra no racionalismo da cultura ocidental a chave para explicar a regressão. Se lembrarmos que para ele a libido é um conjunto múltiplo de necessidades, então o desenvolvimento unilateral do ser humano provoca a regressão. Segundo Jung, existe um impulso ou complexo que concentra em si a maior parte da energia psíquica e obriga o eu a ficar sob seu comando.
Habitualmente, é tão intensa a força de atração exercida por este foco de energia sobre o eu que este se identifica com ele, passando a acreditar que fora e além dele não existe outro desejo ou necessidade. É assim que se forma uma mania, monomania, possessão ou uma tremenda unilateralidade que compromete gravemente o equilíbrio psicológico. O poder de concentrar toda a capacidade num ponto só é sem dúvida algumas o segredo de certos êxitos, razão porque a civilização se esforça ao máximo em cultivar especializações (JUNG, 1989, p. 64).
Para Jung, o ser humano tem o direito de considerar sua razão “bela e perfeita”, mas ela é apenas uma das “funções espirituais possíveis”, sendo uma ilha rodeada por todos os lados pelo irracional. A religião é uma expressão irracional que faz parte da totalidade psíquica humana. “O conceito de Deus é simplesmente uma função psicológica necessária, de natureza irracional, que absolutamente nada tem a ver com a questão da existência de Deus” (JUNG, 1989, p. 63). Assim, ele diz: “estou plenamente convencido da extraordinária importância do dogma e dos ritos, pelo menos enquanto métodos de higiene” (JUNG, 1987, p. 49).
Assim, a “receita de Jung” é aceitar as funções psíquicas irracionais da mente e, visando evitar a regressão, devemos nos entregar à “experiência religiosa”. Mas por qual motivo Jung quer evitar a regressão ao inconsciente coletivo? O que ele busca evitar é que a libido retire seu objeto dos conteúdos do inconsciente coletivo. As imagens primordiais contidas no inconsciente coletivo
contém não só o que há de mais belo e grandioso no pensamento e sentimento humanos, mas também as piores infâmias e os atos mais diabólicos que a humanidade foi capaz de cometer. Graças a sua energia específica (pois comportam-se como centros autônomos carregados de energia) exercem um efeito fascinante e comovente sobre o consciente e, consequentemente, podem provocar grandes alterações no sujeito. Isso é constatado nas conversões religiosas, em influências por sugestão, e, muito especialmente, na eclosão de certas formas de esquizofrenia (JUNG, 1989, p. 62).
Consideramos que estes elementos são suficientes para compreender a concepção junguiana de inconsciente coletivo e por isso deixaremos de lado outros termos e teses relacionados. Realizaremos, a partir de agora, uma avaliação crítica de sua concepção para, posteriormente, retomar os elementos que contribuem para a elaboração de uma teoria do inconsciente coletivo na perspectiva do materialismo histórico.
A preocupação fundamental expressa nos textos de Jung é com a irrupção do lado obscuro da mente humana. Sua grande preocupação é com as “piores infâmias e os atos mais diabólicos que a humanidade pôde cometer”. De onde surgiu tal preocupação? Como está explícito em suas obras, sua origem se revela na ocorrência da Primeira Guerra Mundial (reforçada pela Segunda Guerra Mundial) e no temor do fascismo e do bolchevismo.
A base da preocupação junguiana com a guerra e os fanatismos políticos, no entanto, reside em outro lugar. Sem dúvida, a questão das guerras mundiais e da ascensão do nazifascismo produziram uma preocupação em diversos pesquisadores sobre como tal barbarismo pode ocorrer. Contudo, a resposta específica fornecida por cada pesquisador e o grau de importância fornecido a estes fenômenos decorrem da mentalidade de cada um deles. Erich Fromm e Theodor Adorno, para citar apenas dois exemplos, desenvolveram outras teses e assumiram outras posições sobre tal fenômeno.
Sem dúvida, a posição de Jung foi o resultado de um complexo entrelaçamento de determinações. A primeira e fundamental reside no conservadorismo de Jung, já aludido anteriormente. Embora ele consiga identificar alguns problemas da “civilização ocidental” (sociedade capitalista), o seu conservadorismo não lhe permite descobrir o processo de constituição das relações sociais fundadas no antagonismo de classes. Isto se vê, por exemplo, na sua afirmação ingênua de que a especialização é incentivada pela civilização porque é “o segredo de certos êxitos”. O processo de desenvolvimento social fundado no processo de produção da vida material produz a divisão social do trabalho e, no capitalismo, isto se amplia numa escala extremamente elevada. A especialização de Jung na psicanálise e seu desconhecimento e desconsideração do marxismo, da sociologia, etc., possibilitam sua explicação unilateral da força da especialização na sociedade capitalista. A unilateralidade intelectual é um problema que Jung não percebeu, bem como o fato dela ser um produto de uma subespecialização.
Mas além desta determinação, podemos dizer que a sua experiência psíquica e seu envolvimento na primeira guerra mundial contribuiu com isto. Ele “serviu durante a primeira guerra mundial como comandante do campo de prisioneiros de Chateau D’Oex” (SILVEIRA, 1981, p. 18). Se a guerra impressiona pessoas distantes dela, o seu efeito é muito maior naqueles que a presenciam, provocando, em muitos casos, processos traumáticos. Foi neste período que ele teve “intensas experiências interiores”, “sonhos impressionantes”, “visões”. Assim,
pareceu-lhe que a melhor solução seria esforçar-se por decifrar-lhes o sentido, mantendo a consciência sempre vigilante e não perdendo o contato com a realidade exterior (SILVEIRA, 1981, p. 17).
Percebemos que Jung se encontrou numa encruzilhada, no qual corria o risco de “perder o contato com a realidade exterior”, o que significa que ele passou por uma forte experiência de conflitos psíquicos que poderiam ter desembocado em uma neurose. No entanto, ele arranjou forças para superar tais conflitos e o risco que correu lhe proporcionou um medo intenso de “cair nas trevas”. A solução que ele deu foi considerar este “lado sombrio” como um não-eu, tal como ele concebe o inconsciente coletivo.
Assim, este medo intenso que Jung tinha de si mesmo foi projetado para fora, para o inconsciente coletivo. É por isso que ele fornece esta receita para as demais pessoas e também concebe à religião um papel tão importante, pois ela pode canalizar a energia psíquica e impedir que “o mal” venha à tona. O medo de si mesmo é transferido para a humanidade e é por isso que as guerras mundiais, o fascismo e o bolchevismo se tornam suas grandes preocupações. O seu conservadorismo pessoal e o conservadorismo social se reforçam reciprocamente.
Até aqui explicamos a gênese da concepção junguiana do inconsciente coletivo. Mas ainda resta a tarefa de realizar a sua crítica. Jung critica Freud e Adler por produzirem “teorias redutivas” com pretensão de globalidade e não percebe que ele produz uma concepção reducionista com igual pretensão globalizante. O reducionismo se encontra em sua explicação unilateral dos fenômenos se fundamentando apenas nas forças psíquicas, deixando de lado toda a complexa totalidade e as múltiplas determinações dos fenômenos. É o que se vê, por exemplo, na sua interpretação do nazismo, considerado por ele um “fenômeno patológico”, uma “irrupção do inconsciente coletivo”. Segundo Silveira, para Jung,
Wotan havia tomado posse da alma do povo alemão. E que é Wotan? É o Deus pagão dos germânicos, um Deus das tempestades e da efervescência, desencadeia paixões e apetites combativos’. Num ensaio publicado em 1936, Jung traça o paralelo entre Wotan redivivo e o fenômeno nazista. Wotan é uma personificação de forças psíquicas – corresponde a ‘uma qualidade, um caráter fundamental da alma alemã, um ‘fator psíquico de natureza irracional, um ciclone que anula e varre para longe a zona calma onde reina a cultura’. Os fatores econômicos e políticos pareceram a Jung insuficientes para explicar todos os espantosos fenômenos que estavam ocorrendo na Alemanha. Wotan reativado no fundo do inconsciente. Waton invasor, seria a explicação mais pertinente (SILVEIRA, 1981, p. 23).
O reducionismo de Jung não é nem um pouco melhor do que o de Freud e Adler. Isto se torna mais perceptível quando notamos que o seu fundamento é metafísico. Por qual motivo “Wotan foi reativado”? Isto só pode ser explicado pelo complexo processo social ocorrido na sociedade alemã (a derrota na primeira guerra mundial, as tentativas de revolução socialista, as dificuldades de reprodução da acumulação capitalista, a fome etc.). No entanto, Jung desconsidera o processo social e se refugia em “arquétipos” imutáveis e universais.
As “provas” que ele apresenta para a existência de tais arquétipos não provam nada, pois os mitos, contos de fada, lendas, etc. por mais que possuam semelhanças, não significa que expressam “imagens primordiais”, além do fato de que grande parte das semelhanças são produtos da interpretação de Jung. Da mesma forma que um matemático pode encontrar “elementos matemáticos” na base de toda construção humana (ciência, arte etc.), um maniqueísta pode ver a “luta do bem contra o mal” em tudo que existe, um darwinista pode ver a “luta pela existência” e a “sobrevivência dos mais aptos” em todas as esferas da vida, um pseudomarxista pode ver “causa econômica” em tudo que existe, Jung pode encontrar o inconsciente coletivo em todas as manifestações culturais. Contudo, todas estas concepções são reducionistas e produtos de mentes engenhosas, mas que não passam de modelos mentais, nos quais a realidade é encaixada à força, e servem muito mais para ocultá-la do que para revelá-la.
Desta forma, Jung apresenta uma concepção igualmente reducionista, tal como acusava em Freud e Adler. No entanto, existem alguns “momentos de verdade” na concepção junguiana (da mesma forma que ele afirmou existir nas concepções de Freud e Adler). Essa breve análise da concepção junguiana do inconsciente coletivo é importante para adiante podermos resgatarmos os seus momentos de verdade.


[1] Jung dedica uma de suas principais obras ao problema dos tipos psicológicos (JUNG, 1976).
[2] “Como é sabido, o processo cultural consiste na repressão progressiva do que há de animal no homem; é um processo de domesticação que não pode ser levado a efeito sem que se insurja a natureza animal, sedenta de liberdade” (JUNG, 1989, p. 11). Ele acrescenta que hoje sabe-se que não é só a natureza instintiva que é atingida pela coerção cultural mas também “novas ideias”, as paixões políticas e a religião.

* VIANA, Nildo. A Concepção Junguiana de Inconsciente Coletivo. In: VIANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. 2ª edição, Revista e Ampliada. Florianópolis, Bookess, 2015.


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Capitalismo e Neurose


Capitalismo e Neurose

Nildo Viana* 



O presente ensaio visa discutir uma questão fundamental para a sociedade contemporânea: a relação entre neurose e sociedade capitalista. Os estudos psicanalíticos de Freud e dos demais psicanalistas abriram caminho para se pensar tal relação e isto abre espaço para pensarmos o papel da neurose no processo das lutas de classes.
A primeira questão consiste em definir o que é a neurose e ver suas condições de possibilidade, ou seja, como ela é produzida. Existem várias definições de neurose e, segundo algumas dessas, há vários tipos de neurose. Freud, por exemplo, distinguia psiconeuroses de defesa, neurose de angústia etc. No entanto, ele não define neurose de forma clara, bem como a maioria dos psicanalistas posteriores. Iremos aqui, inspirando em Karen Horney, mas diferenciando-nos dela, definir neurose como um problema psíquico específico, caracterizado por uma insegurança estrutural do indivíduo diante da sociedade, o que gera dois mecanismos de defesa principais e complementares: a fuga e a hostilidade.
A fuga promove o isolamento, restrição de contatos e amizades, inibição. A hostilidade gera agressividade e complementa o quadro anterior. O indivíduo neurótico resolve o seu problema de insegurança estrutural fugindo e hostilizando as pessoas, o que mantém, por um lado, um círculo de pessoas (geralmente a família e poucas amizades) que servem de refúgio do contato com outros e a hostilidade para os estranhos e não-eleitos em geral. Sem dúvida, a hostilidade também ocorre junto ao círculo mais restrito de contatos, mas apenas para complementar a necessidade de segurança através do controle, o que gera conflitos e agressividade. Isto também promove um terceiro elemento que é uma certa rigidez psíquica, voltada para a fuga, a agressividade, a rispidez cotidiana, a busca de ordem e que tudo seja organizado e coerente com o seu costume, o que lhe dá a sensação de segurança.
Por conseguinte, esta insegurança estrutural do indivíduo que caracteriza a neurose é entendida e manifesta através do medo, o que faz com alguns pesquisadores focalizem este aspecto da neurose (HORNEY, 1984). A insegurança estrutural promove no indivíduo uma vontade de fuga, de “volta ao útero”, para escapar do mundo, criando uma necessidade exagerada de segurança. Isto promove dificuldade de amar, relacionar, desconfiança exagerada, isolamento, agressividade, rigidez, possessividade. Também, devido à necessidade exagerada de segurança, também promove uma preocupação excessiva com a ordem e promove comportamentos irracionais e restritivos de relacionamentos, nos quais a família e pessoas próximas, são eleitas como suficientes e o afastamento de desconhecidos ou pessoas não “confiáveis”, segundo os critérios restritos produzidos na situação acima são os mais importantes.
No que se refere ao mundo afetivo, acaba gerando laços afetivos restritos, afinal isto é “mais seguro”. Da mesma forma, a possessividade garante maior segurança e a irracionalidade do comportamento e pensamento sofre o processo que psicanaliticamente foi denominado racionalização. Isto cria não somente conflitos com as demais pessoas, mas também conflitos interiores, pois o desejo de relação afetiva (no sentido amplo da palavra) e a dificuldade em concretizar isso, devido a busca de segurança, cria uma seletividade restritiva. Essa seletividade, para garantir confiança e controle, acaba elegendo pessoas mais subservientes, recatadas, menos intelectualizadas ou questionadoras (ou seja, menos ameaçadoras), se não em geral, pelo menos em relação ao indivíduo neurótico.
No que se refere ao processo intelectual, promove uma inibição intelectual (o que gera uma certa segurança ao evitar exposição), o que também produz restrição na produção intelectual, já que isso evita conflito e permite uma confiança ilusória. Desta forma, a iniciativa e capacidade crítica e criativa acabam sendo prejudicadas e diminuídas. A dificuldade de iniciativa e desenvolvimento da criatividade, necessidades radicais de todo ser humano, acaba piorando a situação do indivíduo neurótico. A capacidade crítica é obliterada, pela insegurança geral e pelos conflitos que isso pode gerar. Isso gera também um pensamento rígido sobre questões cotidianas, afetivas, familiares.
Esta situação acaba também afetando os valores do indivíduo neurótico. Alguns valores acabam sendo bastante evidentes nesse caso: família, autoridade, subserviência, ordem. Em casos concretos, obviamente, pode haver conflitos de valores nestes indivíduos, principalmente dependendo de outras determinações, como consciência, sentimentos, outros valores, etc., que são mais fortes quando derivado de pessoas significativas para tal indivíduo. Isto se deve ao complexo problema da formação dos valores nos indivíduos concretos (VIANA, 2007) e ao processo de informação e formação intelectual do indivíduo, entre outras determinações.
Assim, o indivíduo neurótico sempre está próximo ou manifesta autoritarismo, possessividade, controle das pessoas próximas, agressividade, e, quando se trata de relações fora deste círculo, a hostilidade é a resposta para garantir a segurança diante do mundo ameaçador, ou então a submissão e subserviência que solicita dos outros e, em situação desfavorável, pode fazê-lo para se sentir seguro diante das autoridades e pessoas vistas como “ameaçadoras”. Em casos de indivíduos concretos, a solução da submissão e subserviência pode ser mais constante devido sua situação nas relações sociais, entre outras determinações.
Porém, é preciso ter em vista que a neurose está ligada a uma insegurança estrutural e não qualquer insegurança, que todos os indivíduos possuem, em maior ou menor grau, com mais ou menos intensidade dependendo do contexto, etc. uma certa insegurança. Trata-se de uma insegurança estrutural, que perpassa a “personalidade” total do indivíduo. Neste sentido, é possível se pensar, como faz Horney (1984), numa “personalidade neurótica”. Algumas pessoas neuróticas são tão agressivas que podem desviar a percepção de sua grande insegurança, pois assim passam a falsa sensação de que são seguras e racionalizam o seu comportamento agressivo sem admitir sua raiz ligada à sua insegurança estrutural, sendo que alguns destes indivíduos nem sequer possuem uma consciência clara disso.
O que gera a neurose? Esta é uma questão importante para entender a questão da relação desse problema psíquico com a transformação social. A formação da neurose está ligada ao processo de socialização repressiva-coercitiva, que promove a repressão de determinadas potencialidades humanas, principalmente durante a infância e juventude, aliado com uma forte coerção, ou seja, produção de comportamentos, ideias, sentimentos, etc. A socialização repressiva impede a manifestação de potencialidades humanas e isso, durante a infância, pode ser extremamente prejudicial psiquicamente. Quando a repressão é muito forte, quando é uma mais-repressão (Viana, 2008), tende a provocar desequilíbrios psíquicos. O caráter coercitivo da socialização pode reforçar este processo e, no caso da neurose, assume um papel complementar e fundamental.
No caso da sociedade capitalista, a socialização impõe valores e busca instituir uma mentalidade burguesa nos indivíduos, nos quais a competição, a busca do sucesso, riqueza, poder, etc., se tornam fundamentais. Para conseguir realizar isto, é necessário disciplina, estudos, dedicação e isto se sobreporá, numa socialização comandada pela sociabilidade capitalista e mentalidade burguesa, a liberdade e a criatividade. Em síntese, a coerção sendo forte, a repressão também será, pois para se dedicar intensivamente ao trabalho (alienado) é necessário o abandono de outras atividades e necessidades.
A família acaba tendo um papel fundamental nesse processo, já que é a principal instância de socialização. Se os valores dos pais apontam para este processo de reprodução da mentalidade burguesa, então constitui num elemento importante para se pensar o processo de produção de um indivíduo neurótico. A repressão existente nesse caso não produz, necessariamente e em todos os casos, neurose nos indivíduos submetidos a ela. Mas se isto for acompanhada por algumas outras determinações, isto se torna cada vez mais provável. Se a mentalidade burguesa dos pais é excessiva, então um alto grau de cobrança familiar existirá (maior grau de coerção). Os estudos deverão sobrepor à brincadeira e a criatividade, por exemplo. Só serão valoradas as atividades que são manifestações diretas dos valores dominantes, e as outras serão desvaloradas. Isso tende a ser mais forte ainda se os laços afetivos no interior da família são frios e ocorre a depreciação dos filhos. Assim, a afetividade, a realização sentimental, é reprimida. A depreciação e desconsideração do filho/a tende a gerar uma forte insegurança. O neurótico geralmente aceita os valores dominantes, pelo menos parcialmente, e nesse sentido assume para si metas que são tipicamente as da sociabilidade capitalista e mentalidade burguesa, promovendo um anseio por ascensão social, riqueza e poder:
Sem descer a minúcias, as linhas gerais do círculo vicioso que surge do anelo neurótico por poder, prestígio e posses podem ser, aproximadamente indicadas da seguinte forma: ansiedade, hostilidade, respeito próprio abalado; anelo pelo poder e coisas semelhantes; aumento da hostilidade e de ansiedade; tendência para esquivar-se à competição (associada a tendências para subestimar-se); fracassos e discrepâncias entre potencialidades e realizações (acompanhados de inveja); incremento das idéias de grandeza (com medo da inveja); sensibilidade exacerbada (com tendência renovada para retrair-se); aumento da hostilidade e da ansiedade, que reinicia, novamente, todo o ciclo (HORNEY, 1984, p. 165).
Isto tudo pode ser reforçado pela educação escolar, que pela sua estrutura já tende a um processo de reprodução da mentalidade e sociabilidade dominantes. Porém, quando isto é mais intenso, ou seja, quando a escola reforça em demasia a competição, os valores dominantes, etc., tal como ocorre na educação mais tradicional, autoritária e burocrática, a tendência para formação de indivíduos neuróticos aumenta ainda mais.
A singularidade individual também pode reforçar esta possibilidade. Esta possibilidade se concretiza quando ocorre algum trauma, por exemplo. Também pode ocorrer devido determinadas características físicas (naturais ou acidentais, por elas mesmas ou pela percepção social das mesmas, tal como o preconceito, etc.) ou, ainda, determinados acontecimentos, amizades, etc., atuam no sentido de reforçar as suas bases.
Em síntese, quando a socialização é extremamente repressiva e coercitiva, há a tendência de produzir indivíduos neuróticos. Se esse processo é muito intenso e marcado por valores burgueses e não se cria nenhuma outra possibilidade de superação parcial desse quadro, então a formação da neurose no indivíduo é o que ocorre. A neurose é produzida nos indivíduos que, devido a mais-repressão a que são submetidas, acabam possuindo uma sombra, energia destrutiva, bastante poderosa. Porém, isso ocorre quando o indivíduo não consegue desenvolver sua persona, energia construtiva, seja se destacando em atividades intelectuais, artísticas, etc. Obviamente que a mais-repressão tende a inibir tal desenvolvimento nestas pessoas, porém, devido outras determinações é possível que o indivíduo consiga superar esta tendência.
Desta forma, a mais-repressão, aliada a outras determinações, especialmente uma forte coerção, tende a promover a formação de indivíduos neuróticos. Devido aos processos sociais acima aludidos relacionados existem certos setores da sociedade mais propícios para desenvolvimento da neurose. Este é o caso das classes auxiliares da burguesia (burocracia, intelectualidade, etc.) e as mulheres. Segundo Schneider:
Já que a posição social na família de classe média baseia-se em geral no status profissional (especialmente entre funcionários de qualquer espécie, empregados de alto nível e ‘profissionais liberais’) e não em propriedade geradora de capital, esse status só pode ser mantido através de qualificações similares entre as crianças (SCHNEIDER, 1977, p. 246).
As mulheres já são mais tendenciosamente expostas à neurose devido ao processo de opressão da mulher e sua repressão ser maior, bem como a coerção (que pode ser tanto no sentido da competição social como na reclusão para atividades domésticas e cuidado dos filhos, sendo que este último caso só tende a fortalecer a formação da neurose, se houver uma recusa ou falsa aceitação destas atividades e/ou pouca relação afetiva com os filhos).
No caso das classes exploradas, o que ocorre é que as situações de mais-repressão tendem a gerar, tendencialmente, psicose e não neurose.
De fato, Langner e Michael conseguiram provar que as perturbações psicóticas e as características da personalidade patológica são significativamente mais freqüentes entre as classes baixas, mas que as perturbações neuróticas, por outro lado, são significativamente mais freqüentes nas classes média e alta (da sociedade americana). O “Estudo de New Haven”, de Holligshead e Redlich, demonstra também que nas classes alta e média as neuroses predominam, enquanto que nas classes proletárias a psicose é claramente dominante (SCHNEIDER, 1977, p. 245).
Obviamente que não é possível concordar com a explicação que Schneider oferece para esse quadro de repartição tendencial de desequilíbrios psíquicos pelas classes sociais. Sua tese de que a explicação disto está no fato de que existe uma educação mais rígida das famílias proletárias e educação mais permissiva nas classes privilegiadas é bastante questionável. Afinal, muitas famílias das classes privilegiadas, devido à competição social e ambição, promovem um processo educativo altamente repressivo e rígido, enquanto que muitas famílias proletárias são menos rígidas. Porém, existem outras determinações, tal como a afetividade, a maior ou menor facilidade de atingir as metas educativas ou sociais, o tipo de escola e relação familiar, etc. Na verdade, a neurose é uma tendência mais forte nas classes privilegiadas porque nestas há um maior número de famílias comandadas totalmente pela mentalidade burguesa e pela dinâmica da competição desenfreada, o que provoca várias tendências que apontam para a formação de neuroses nos filhos: laços frios ou distantes devido ao tempo dedicado ao trabalho; exigências e cobranças excessivas, visando preparar os filhos para a competição social. Assim, existe um alto grau de repressão e coerção no caso das classes privilegiadas, que incentiva a formação de pessoas neuróticas.
No caso das famílias das classes exploradas, a realidade cotidiana sofrível, a falta de perspectiva de ganhar a competição social, entre outras determinações, promovem uma recusa e fuga desta realidade. A grande questão é que grande parte da repressão não é produzida via família e sim devido a condições sociais externas (renda baixa, por exemplo). Isso possibilita uma mais-repressão que, no entanto, não convive com uma coerção familiar ou outras tão intensas. A baixa coercitividade tende a não gerar uma insegurança tão intensa e sim uma insatisfação devido ao confronto entre desejos e necessidades e sua não realização, criando um confronto do indivíduo com sua situação social e, por conseguinte, com sua percepção da realidade. Assim, somente em famílias de classes exploradas marcadas por um forte domínio da mentalidade burguesa, que gera praticamente uma forte coerção, é que – junto com outras determinações que remete a casos concretos – pode promover a formação de neuroses.
Porém, é preciso reconhecer que existe uma relação entre classes sociais e desequilíbrios psíquicos. Há uma tendência entre as classes privilegiadas de desenvolver neuroses e entre as classes exploradas em desenvolver psicoses, quando ocorre situação de mais-repressão. Nesse aspecto, Schneider está correto. Essa tendência dos indivíduos das classes privilegiadas desenvolverem neurose em situação de mais-repressão, pode ser explicitada pelo fato de que se trata de um problema psíquico que tem como efeito uma adaptação (problemática, mas aceitável) à sociedade tal como ela se organiza. A psicose, por sua vez, já é problema psíquico que revela inadaptação. Na concepção freudiana, o conflito entre id e ego se resolve de forma diferente na neurose e psicose:
Segundo Freud, na neurose o ‘id’ está em conflito com o ‘ego’, isto é, o superego, que reprime o desejo instintivo em nome da realidade frustrante. (...). Na psicose, ao contrário, o ego encontra-se a serviço do id, o desejo instintivo, isto é, renuncia à realidade frustrante de modo a substituí-la por sua realidade ilusória (SCHNEIDER, 1977, p. 244).
Em termos freudianos, a neurose se pende para o superego e a psicose para o id (SCHNEIDER, 1977; FREUD, 1976a). Desta forma, fica evidente que a psicose tende a ocorrer de forma mais freqüente nas classes exploradas e a neurose nas classes privilegiadas. A neurose se forma quando há uma mais-repressão e não há criação, em um indivíduo concreto, de satisfação substituta ou persona forte e a psicose ocorre da mesma forma. A diferença é que, no caso da neurose, a repressão é reforçada pela coerção, isto é, além do impedimento de manifestação e desenvolvimento de determinadas necessidades-potencialidades, há um processo de constrangimento para o desenvolvimento de determinados comportamentos, atividades, valores, sentimentos, etc., que o indivíduo não consegue materializar. No caso da psicose, o processo de insatisfação gera uma remodelação da realidade, na qual parte da realidade existente é substituída por uma imaginária. O indivíduo psicótico é aquele que apresenta uma insatisfação profunda com a sua situação e as relações sociais, mas não possui mecanismos de negação, porquanto não compactua com os objetivos e valores postos pela mentalidade burguesa, tornando-se inapto socialmente. A psicose produz como mecanismo de defesa a recusa da realidade e sua remodelação imaginária.
Sendo assim, a mais-repressão gera desequilíbrios psíquicos e estes assumem características diferentes dependendo de outras determinações existentes. A situação de classe e outras determinações sociais acabam proporcionando maior tendência ao desenvolvimento de neurose ou psicose.
Agora que já definimos neurose e seu processo de formação, é necessário observar suas relações com a sociedade capitalista e com as lutas sociais. A relação entre capitalismo e neurose é evidente a partir das considerações sobre o processo de gênese deste fenômeno psíquico. A base geral da neurose é a sociedade repressiva-coercitiva que exerce mais-repressão e um alto grau de coerção. Obviamente que casos de neurose existiram em sociedades pré-capitalistas, tal como o caso descrito por Freud de “neurose demoníaca”, no período de transição do feudalismo para o capitalismo (Freud, 1976b), mas devido a processos sociais bem diferentes e em muito menor grau.
Os indivíduos neuróticos, tal como colocamos anteriormente, possuem processos de inibição e dificuldades em relações afetivas, produção intelectual, etc. No que se refere ao posicionamento político dos indivíduos a questão da consciência e seus limites nos indivíduos neuróticos assume papel importante.
O mundo externo não pode recusar impulsos se não for através do ego. Porém, as percepções externas podem ser recusadas, quem sabe, com o que poderia tomar parte de um conflito neurótico. Ao ocuparmos das neuroses traumáticas fica demonstrado, pelo fenômeno do desmaio e o bloqueio de percepções exteriores, que o mundo externo (as percepções) pode ser recusado. Nas psiconeuroses ocorre um fenômeno similar: há alucinações negativas que representam a rejeição de certa porção do mundo externo. Existe o esquecimento ou a má interpretação de fatos externos devido objetivo de alcançar a satisfação de um desejo; há toda classe de erros em uma “prova pela realidade”, que se produzem sob a pressão de derivados de desejos ou temores inconscientes. Sempre que um estímulo faz surgir sensações dolorosas, se produz uma tendência não só a rejeitar as sensações, mas também o estímulo (FENICHEL, 1966, p. 156).
Assim, a personalidade neurótica tem limitações para reconhecer a realidade tal como ela é, e isso é reforçado se percebermos, como colocamos anteriormente, que este problema psíquico atinge principalmente as classes auxiliares da burguesia, que possuem valores dominantes e sua reprodução da mentalidade burguesa é um dos fortes incentivos para a formação de neurose. A consciência do neurótico tende a reproduzir sua insegurança básica, o que provoca rigidez no pensamento e inibição em produção intelectual. Além disso, tende a provocar um excessivo temor do que é tido como desconhecido ou estrangeiro, tanto no sentido espacial quanto temporal (medo do outro e medo da mudança), e isto promove o desejo de controle rígido e hostilidade para quem escapa do controle. Nesse sentido, a pessoa neurótica tende a aderir ao pensamento conservador.
Um dos grandes problemas é o processo de produção capitalista que tende a produzir um grande número de pessoas neuróticas, o que significa que os problemas individuais do neurótico possuem conseqüências sociais e políticas e que se torna mais intenso quando isto atinge muitas pessoas e mais ainda em determinados momentos históricos. A ascensão do nazismo na Alemanha, por exemplo, teve como base inicial pessoas neuróticas. O pensamento nazista assume nítidas características neuróticas. O próprio Hitler tinha uma personalidade neurótica, embora em grau bastante elevado e acima da média de um neurótico comum. A própria prática nazista mostra semelhança com as características neuróticas: insegurança (nacional, medo dos “judeus” e “bolchevistas”); hostilidade (internamente e externamente) principalmente com os “inimigos imaginários” produzidos (VIANA, 2007), luta por superioridade (a arte nazista, o exército nazista, “superiores”, assim como a ideologia da raça ariana superior, que era complementada pela destruição da arte moderna, “degenerada”, pela eutanásia e eugenia dos judeus, deficientes, etc.), posição autoritária e/ou subserviente, inclusive no plano intelectual.
A base de apoio do nazismo se encontrava, especialmente em seu início, justamente nas classes auxiliares da burguesia (“classes médias” ou “pequena burguesia”, segundo linguagem ideológica dominante). Reich defende a tese de que o movimento fascista expressa uma união da “pequena burguesia” e relaciona isso com a “psicologia de massa”:
Encontramos a resposta a essa pergunta na posição dos funcionários e dos pequenos e médios empregados. O empregado médio está numa situação econômica mais desvantajosa que o operário médio qualificado; essa situação mais desvantajosa é em parte compensada pela perspectiva mínima de uma carreira, mas sobretudo, para o funcionário, pelo fato do seu futuro estar garantido para o resto da vida. Estando assim nessa situação de dependência em relação às autoridades estabelecidas, forma-se igualmente nessa camada uma atitude psicológica de concorrência em relação aos colegas, que se opõe ao desenvolvimento de solidariedade de classe. A consciência social do funcionário não se caracteriza pela consciência de comunidade de destino com os seus colegas de trabalho, mas pela sua posição em relação à autoridade pública e á ‘nação’. Essa posição consiste numa completa identificação com o poder de estado, no empregado consiste numa identificação com a empresa que serve. É tão explorado quanto o operário. Por que razão não desenvolve como este um sentimento de solidariedade? Devido à sua posição intermediária entre a autoridade e o proletariado. Subalterno em relação ao topo, é frente à base o representante dessa autoridade e, enquanto tal, goza de uma certa proteção moral (não material). Encontramos nos sub-oficiais dos diferentes exércitos a formação perfeita desse tipo psicológico de massa (REICH, 1974, p. 47).
O que Reich descreve acima é a posição social das classes auxiliares, a sociabilidade capitalista e sua expressão na mentalidade burguesa. Sem dúvida, isso expressa os valores dominantes e sua introjeção em indivíduos pertencentes às classes auxiliares, mas é vivido e experenciado de forma diferente por parte de indivíduos neuróticos que sustentam a mesma posição. Nos indivíduos neuróticos, isso se manifesta de forma mais intensa e fornece a “vanguarda” da prática nazista. Sem dúvida, os médicos e artistas que aderiram à medicina e arte nazistas logo de início, tendiam a ser neuróticos, e por isso o fato de compartilhar com as práticas nazistas sem maior remorso ou resistência, o que muitos indivíduos das classes auxiliares fariam e alguns efetivamente fizeram, mesmo reproduzindo os valores dominantes. O mais importante é que não só Hitler era neurótico, como também grande parte do núcleo original do nazismo era composto por indivíduos neuróticos que ganharam apoio de outros indivíduos neuróticos e de setores não-neuróticos das classes privilegiadas, devido ao temor social de revolução, do bolchevismo russo, da crise, e da falta de outra solução, devido ao fracasso da socialdemocracia e competição social generalizada.
Em síntese, o capitalismo produz neurose em grande parcela da população e esta assume posições predominantemente conservadoras, reproduzindo a mentalidade dominante. Em momentos de crise, indivíduos não-neuróticos são acometidos por maior insegurança e assumem comportamento semelhante ao dos neuróticos e estes, nesta situação, agravam mais ainda seu conservadorismo, hostilidade e relação simbiótica com a autoridade (autoritarismo e subserviência).
Em casos raros o neurótico pode se alinhar com as forças revolucionárias ou que se dizem “progressistas”. Muitos conseguem, nesse processo, avançar e até mesmo superar os traços mais fortes da neurose, seus sintomas mais explícitos. Porém, esses casos são mais exceção, pois para a superação da neurose através da prática revolucionária (a reformista não permite isso, pois logo se caracteriza como oportunismo e forma de competição social) só ocorre quando o indivíduo consegue superar em grande parte os valores dominantes (o que dificilmente ocorre totalmente, mesmo se tratando de revolucionários autênticos e mais dedicados), abandonar vários sentimentos, pensamentos, típicos da sociedade moderna ou das classes auxiliares. Na maioria dos casos, porém, o que ocorre é a formação do que Fromm chama “caráter rebelde” (que não é necessariamente neurótico, pois muitos são assim devido a outras determinações, como valores, etc., sem ter desequilíbrios psíquicos, mas isto sendo mais consciente):
Defino o rebelde como a pessoa profundamente ressentida contra a autoridade por não ser apreciada, amada, aceita. O rebelde deseja derrubar a autoridade devido ao seu ressentimento e, em conseqüência, constituir-se na autoridade, em substituição à derrubada. Muito freqüentemente, no momento mesmo em que atinge tal objetivo, torna-se amigo da própria autoridade que combatia tão acerbamente, antes (FROMM, 1986, p. 116).
Assim, a neurose é um grave problema social e político, e mais ainda a existência de um grande número de neuróticos, principalmente na perspectiva da emancipação humana, pois é um obstáculo para ela. Sem dúvida, nestes casos a terapia psicanalítica ameniza e não cumpre um papel totalmente conservador, mesmo porque atinge as classes privilegiadas principalmente. Porém, a terapia psicanalítica não é suficiente para resolver o problema da neurose individual e apesar de amenizar e “apaziguar” indivíduos neuróticos e diminuir sua hostilidade e capacidade destrutiva, não apresenta uma alternativa real ao não questionar os valores dominantes e a mentalidade dominante, não reforçar a contestação da socialização repressiva e coercitiva (familiar, escolar, etc.), não apontar para a realização das verdadeiras necessidades-potencialidades humanas e seus reais obstáculos ao invés de propor mera sublimação e reforço da persona.
Nesse sentido, o movimento revolucionário (claro que esse não é o caso da pseudo-esquerda comandada por setores das classes auxiliares da burguesia, especialmente a burocracia, que reproduz tudo o que está na base da formação neurótica) é uma alternativa que pode apontar para uma superação das bases neurotizantes da sociedade capitalista – e também da situação de classe que reforça este processo – apesar das dificuldades neste sentido, que reside nos conflitos interiores das pessoas neuróticas. Mas além dessa ação prática derivada da adesão que alguns indivíduos podem fazer, existem outras ações – que não são específicas para este caso – como o combate aos valores dominantes, a crítica das ideologias, a denúncia e recusa das organizações burocráticas, apresentação de um projeto autogestionário de sociedade, etc., e ações mais específicas, como a produção teórica para esclarecer as bases sociais e capitalistas da neurose moderna, o esclarecimento do sofrimento psíquico individual e sua impossibilidade de resolução total no interior da atual sociedade, entre outras ações, que podem afetar a tendência neurotizante da sociedade moderna, que é parte da luta mais geral pela emancipação humana.
O desenvolvimento da luta operária marca, em seu próprio processo de estabelecimento, bases para uma nova forma de sociabilidade, não fundada na competição e sim na solidariedade, não buscando realização de necessidades socialmente fabricadas e futilidades e sim necessidades autênticas e essenciais, superando o processo de intensa repressão e coerção (em que pese isto não desapareça de imediato, pois resquícios e o combate com a classe dominante e suas classes auxiliares podem exigir certas ações, decididas, no entanto, coletivamente, e não por dirigentes destacados da luta, o que significa que mesmo quando isso ocorre é sob outras relações sociais e sem autoritarismo e determinados tipos de conflitos). No processo de luta, os valores dominantes, os sentimentos predominantes, e tudo o que constitui a mentalidade burguesa é solapada pela hegemonia proletária, que aponta para valores autênticos, novas relações sociais, renovação dos sentimentos, etc.
A autonomização do proletariado e a instituição desta nova sociabilidade e formas de consciência e organização, tendem a romper com as bases neurotizantes da sociedade capitalista. Isto, uma vez ocorrendo, abre espaço para a superação da neurose e psicose, entre outros desequilíbrios psíquicos. Este é um passo fundamental para a abolição da neurose.
A superação da neurose em determinados indivíduos é algo bastante difícil, mas não impossível, principalmente nos casos menos graves. A superação da neurose, como fenômeno coletivo emerge com o processo de autonomização do proletariado e com a autogestão das lutas sociais. A superação total da neurose pressupõe a abolição da sociedade que gera a neurose.



Referências

ADLER, Alfred. El Sentido de La Vida. 6ª edição, Barcelona: Miracle, 1955.

FENICHEL, Otto. Teoría Psicoanalítica de las Neurosis. Buenos Aires: Paidós, 1966.

FREUD, Sigmund. Da Perda da Realidade na Neurose e Psicose. In: Obras Escolhidas Completas. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976b.

FREUD, Sigmund. Neurose e Psicose. In: Obras Escolhidas Completas. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976a.

FREUD, Sigmund. Uma Neurose Demoníaca do Século XVI. In: Obras Escolhidas Completas. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976c.

FROMM, Erich. Anatomia da Destrutividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

FROMM, Erich. O Dogma de Cristo. 5ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

HORNEY, Karen. A Personalidade Neurótica do Nosso Tempo. 10ª edição, São Paulo: Difel, 1984.

REICH, Wilhelm. Psicologia de Massa do Fascismo. Porto: Publicações Escorpião, 1974.

SCHNEIDER, Michael. Neurose e Classes Sociais. Uma Síntese Freudiano-Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

VIANA, Nildo. A Invenção do Inimigo Imaginário. Revista Antítese, v. 2, num. 4, p. 95-111, 2007.

VIANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia: Edições Germinal, 2002.

VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.


VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.
............................................................................................................................................................
Link Original: